Publicado originalmente no site Cinema Escrito, em 28.07.2013
Eles sempre terão o cinema
Cinéfilos que não medem esforços pelos seus amores
Por Luiz Joaquim
“Em 1991 minha família passava dificuldade financeira. Eu
mal tinha dinheiro para pagar o ônibus e ir ao colégio. Mas quando conseguíamos
ir ao cinema era como entrar num outro mundo, eu fugia da minha realidade. Daí,
saía encantado da sala e, como um fotógrafo que procura a melhor luz e
enquadramento, eu olhava para a paisagem na rua e a enxergava como a cena de um
filme imaginário dentro da minha cabeça. Era assim que eu esquecia as minhas
necessidades”.
As lembranças são de Wlademir Moura, 37 anos, engenheiro e
cinéfilo. Com as recordações da adolescência, ele tenta compreender a origem de
uma paixão tão grande quanto insaciável pelo cinema. Seu encantamento
representa o de milhões de abnegados pelo mundo que, pela menos uma fez, já se
sacrificaram para o simples ato de ver um filme, e dessa prática fizeram nascer
um misto de admiração, respeito e carinho.
Uma vez que a cinefilia (ainda) tem uma relação intrísica
com o lugar onde se vive, o CinemaEscrito procurou identificar como seria o
cinéfilo pernambucano de ontem, de hoje e do futuro. Para tanto, conversou com
três gerações destes apaixonados: Jamysson Marques, 67 anos residente no bairro
de Campo Grande ; Yuri Lins, 17 anos, que mora em Cabo de Santo Agostinho; e,
claro, Wladermir Moura, da Iputinga.
Cinefilia – Nos anos 1950, o termo cinefilia começou a
conquistar seu lugar na história cultural do século 20 ao inventar uma forma de
ver e compreender o mundo através do cinema.
Wlademir Moura
37 anos, engenheiro
Se a memória é seletiva em acordo com as coisas que se ama,
Wlademir é um exemplo perfeito. Ele lembra, por exemplo do que sentiu quando
foi ao cinema pela primeira vez. “Era o filme -Popeye-, passava no Ritz ou
Astor, e eu tinha uns seis anos. Uma coisa que achei estranha é que lá havia
uma área para fumantes, e meu pai passou a sessão inteira ali. Ainda achei
esquisito o fato de puder existir um filme com gente de verdade, que não fosse
um desenho animado. Tive medo do escurto também”, diz.
Dessa fase recorda com carinho também dos filmes com Os
Trapalhões, no Veneza, e da primeira vez que foi ao cinema sem os pais. O
título escolhido foi “Os Caça-Fantasmas”, visto no Art Palácio. Em 1990, ele
passaria por uma experiência inesquecível no São Luiz vendo “Esqueceram de Mim”
– “Imagine 1300 pessoas rindo consecutivamente por quase duas horas!”, conta. A
partir daí, o desejo de continuar com aquela alegria não parava e Wlademir
passou a assistir a tudo que conseguia, e as idas aos cinemas no centro do
Recife com os pais e irmã mais nova passaram a ser bastante esperadas.
Wlademir lembra especialmente de um domingo em que foram ver
“Ghost”, no Veneza (rua do Hospício), mas a fila estava na avenida Conde da Boa
Vista. “Desistimos e fomos ao São Luiz, mas -Dança com Lobos- estava lotado. O
Moderno exibia -O Poderoso Chefão 3-, cuja censura era proibitiva para mim e
para minha irmã; fomos ao Art Palácio e para -Tempo de Despertar- não havia
ninguém na frente. Aí meu pai desconfiou que o filme não prestava. Voltamos
todos pra casa, eu com uma revista Set e minha irmã com a Fama”.
Logo depois viria a fase mais difícil de sua família as idas
ao cinema diminuíram. “Eu estudava no Ginário Pernambucano e quando acaba a
aula, saía fazendo um tour pelos cinemas da cidade. Ficava conversando com os
porteiros até que um dia eu perguntei se não podia entrar de graça. Qual foi
minha surpresa quando consegui no Art Palácio para ver -Hudson Hawk-. Lá
dentro, eu fiquei uns 30 minutos sem acreditar que tinha entrado. Resultou que
vi três sessões seguidas”.
Como este amor de sua geração passa pelo carinho com as
salas onde assistiu todos estes e outros filmes, Wlademir recorda de sua
preocupação quando soube em 2006 que o São Luiz poderia fechar. “Certa vez eu
lotei dois carros, um Fiesta e um Fusca. Eramos 16 pessoas, várias crianças,
para ver -A Era do Gelo 2-. Eu não queria que o cinema fechasse e era a forma
que eu tinha de colaborar, levando os amigos ao cinema, formando um público já
habituado a ir para shopping”.
Dono de mais de 400 DVDs, Wlademir revela que não viu nem
metade deles. “Eu os compro para ter perto os títulos do coração. Meu prazer é
mesmo ir ao cinema e dou graças a Deus que ainda existam o Rosa e Silva, a
Fundaj, e o São Luiz. À propósito, Geraldo Pinho [programador do São Luiz] faz
milagres ao colocar quatro diferentes filmes em cartaz lá. A situação ali está
muito precária. Até hoje aguardo a inauguração do projetor digital que o
governo anunciou à imprensa na mesma época da Fundaj. Sobre o Apolo, vale
ressaltar o esforço dos funcionários que o mantém funcionando. Sobre o
Cineteatro do Parque então, melhor nem falar”, indigna-se.
Queixas à parte, o cinema lhe deu também a felicidade de
conhecer Karyne Brito. “Há sete anos, fui assistir -O Senhor das Armas- no
Shopping Boa Vista. Ela estava lá escolhendo o que ver. Assistimos a sessões
juntos e depois veio o namoro”, conta. O resultado é que, em setembro próximo,
Wlademir e Karyne consagram-se como marido e mulher.
— 5 filmes por Wlademir Moura
– Esqueceram de Mim, de Chris Columbus
– O Silêncio dos Inocentes, de Jonathan Demme
– Quatro Casamentos e Um Funeral, de Mike Newell
– Cidade de Deus, de Fernando Meirelles
– O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho
— O programador Wlademir
Até os anos 1980, os grandes cinemas do Severiano Ribeiro no
Recife tinham um perfil bem particular de programação. O cinéfilo Wlademir
Moura costuma brincar e pensar os que eles exibiriam hoje.
“Meu Malvado Favorito 2”
Entraria em cartaz no Veneza. Era famoso por receber as
produções infantis, como “E. T.: O Extraterrestre” e os filmes de Os
Trapalhões. Quando lotado de crianças, parecia um parque de diversão.
“O Homem de Aço”
Exibiria no cine São Luiz. Era o espaço para lançar as
superproduções de Hollywood. O próprio “Super-Homem: O Filme”, de 1978 com
Chistopher Reeves, foi lançado ali.
“O Cavaleiro Solitário”
Por ser a sala “adulta” do Grupo no centro do Recife,
estrearia no cine Moderno. Lá exibiam os filmes mais picantes, além de outros
de aventura como “Indiana Jones”.
Jamysson Marques
67 anos, advogado aposentado
“Eu não acho que minha história seja importante” é assim que
o advogado aposentado Jamysson Marques, começa a conversar com a reportagem.
Desconfiado de que sua paixão pelo cinema não valesse a pena ser contada no
jornal, preferiu inclusive nem ser fotografado. O sexagenário é mais uma prova
viva de como a lembrança vincula-se ao que se ama. Mesmo após ter visto
milhares de filmes – “só em casa tenho, por baixo, 3.000 títulos entre DVD e
VHS -, o cinéfilo não esquece de sua primeira sessão num cinema.
“Fui levado pelo meu pai para ver -Um Conde em Sinuca-, com
Bob Hope, no cine Eden, em Campo Grande. Naquela época [anos 1950], o bairro
tinha também o cine Vera Cruz. Foram eles que alimentaram minha infância com
filmes e desenhos animados. Ali vi também -Branca de Neve- e depois muitos
filmes com Cantinflas e Oscarito”.
Na adolescência, veio o natural interesse pelos títulos de
ação, em particular aqueles com o personagem italiano Maciste e suas aventuras
de capa e espada; além de, claro, ter sido seduzido ao apelo de produções
hollywoodianas. Entre elas “Os Canhões de Navarone”, “Ao Mestre com Carinho”,
“Adivinhe quem Vem para o Jantar”, “Laranja Mecânica”, “Tubarão” e outros
tantos.
Como qualquer cinéfilo, Jamysson foi acumulando ao longo da
vida um impressionante acervo – que mantém até hoje – incluindo críticas de
jornais, fotografias, livros e revistas que remotam os últimos 60 anos de
história do cinema – como “Cinelândia” e “Filmelândia”. Nesta paixão, o cinema
europeu tinha um lugar especial em seu coração. “Recordo que -Dio, Come Ti
Amo!- levava tanta gente ao cine Trianon, que a gente o apelidou de -Dio, Come
Fatura!-.
Entretanto, seu mais marcante encantamento nasceu na Espanha
e atendia pelo nome de Sara Montiel (1928-2013). Fã, a ponto de possuir fotos
exclusivas da atriz e cantora, Jamysson teve três encontros direto com a ídolo
Sarita. “Em 1975, ela veio dar um show no Recife, no Geraldão. Antes concedera
uma entrevista para Celso Marconi, Airton Cavalcanti e Fernando Spencer. Este
último me perguntou se eu gostaria de ir também. Nem acreditei. Fui lá e fiquei
quietinho só observando”.
“O segundo encontro foi por acaso em 1996, quando eu estava
no aeroporto de Madrid. Voltava para o Brasil e a vi no saguão. Me aproximei
sem jeito e perguntei se ela podia autografar um CD. Eu trazia comigo 42 CDs
dela que acabara de comprar lá. Sarita tomou um susto e riu. O último encontro
foi no Cine Ceará, que a homenageou em 2002. Ela cantou três músicas no cine
São Luiz de Fortaleza. Eu queria lhe presentear com fotografias raras e acabei
sendo recebido pela própria no apartamento onde ela estava hospedada”, conta
sem esconder o entusiasmo.
Nos dias de hoje, Jamysson alimenta sua cinefilia indo
apenas ao cine São Luiz e ao Cinema da Fundação. “Quando vou, sento na terceira
fila pois aí não encontro gente fazendo piquenique nem mexendo no celular.
Compro muitos DVDs para assistir em casa. Não gosto de shopping center,
infelizmente as pessoas hoje são mal educadas e as sessões de cinema não são as
mesmas”.
— O ator Jamysson
A proximidade com artistas e jornalistas levou Jamysson
Marques a fazer figuração em alguns filmes. Os atentos o encontrarão em “O
Cangaceiro”, a refilmagem feita por Anibal Massaíne Neto; em “Casa Grande &
Senzala”, de Nelson Pereira dos Santos; e em “Bezerra de Menezes: O Diário de
Um Espírito”, de Glauber Filho e Joe Pimentel.
— 5 filmes por Jamysson Marques
– Rocco e Seus Irmãos, de Luchino Visconti
– Quo Vadis, de Mervyn LeRoy
– Amarelo Manga, de Cláudio Assis
– Ondas do Destino, de Lars Von Trier
– Kolya: Uma Lição de Amor, de Jan Sverák
Yuri Lins
17 anos, estudante
O mais jovem cinéfilo do grupo, Yuri Lins, ainda nem prestou
vestibular. Vai fazê-lo no final de 2013 para estudar cinema, mas já fala com a
propriedade de um grande conhecedor de obras que foram feitas há mais de 40
anos antes dele nascer, como “A Palavra” (1955), de Carl Dreyer.
Quando pedimos para listar cinco filmes que marcaram sua
vida, apenas um – “Gerry” (2002), de Gus van Sant – foi realizado quando Yuri
já existia neste mundo. Seu conhecimento sobre filmes antigos, e raros no
mercado brasileiro, diz muito sobre a cinefilia de sua geração. Uma paixão que
nasceu primeiro em casa diante da tevê e do computador. “Um das minhas maiores
experiências com filmes foi diante do computador”, revela. Só depois o fascínio
cresceu em salas de cinema.
“Meu pai sempre gostou muito de cinema, e lembro de um momento
marcante quando fomos à locadora e alugamos -Réquiem para Um Sonho-, -Laranja
Mecânica-, -Magnólia-. Eu devia ter uns 12 anos e, enquanto víamos os filmes,
meu pai fazia interrupções para perguntar o que eu achava, com o que
concordava, ou não, e isso abriu muito a minha cabeça”, resgata.
A passagem da sala de estar para a sala de cinema aconteceu
quando foi levado ao shopping para ver -Harry Potter e a Câmara Secreta-
(2002). Herói que Yuri já conhecia dos livros. “Hoje acontece o contrário.
Quando há um filme que sei que é preciso ver numa sala de cinema, como -A
Árvore da Vida-, sou eu em quem arrasta meus pais para ir”, conta sorrindo.
“Os espaços que são meus pilares são o Cinema da Fundação e
o São Luiz, mas não sou xiíta. Vejo todo tipo de filme. O problema nos
multiplex é que não temos paz. São lugares onde me sinto desrespeitado. Quero
conhecer o Cineteatro do Parque, mas nunca tive a chance de ver um filme lá”,
lamenta.
Apesar da infinidade de possibilidades que a Internet
oferece ao jovem, Yuri cultiva uma interesse especial pelo cinema brasileiro, e
em particular pelo pernambucano. “Dois filmes que espero ansioso é -Tatuagem-,
de Hilton Lacerda, e -Doce Amianto- , do pessoal do Ceará”, adianta
Para Yuri, mais do que a experiência de estar numa sala de
cinema, ele percebe enriquecer sua cultura nos cineclubes. Frequentador assíduo
do Cineclube Dissenso, ele próprio movimentou o município do Cabo criando o
CineCínico. “Por meio destes encontros formei amigos e me forço a ver filmes
que à princípio não escolheria. É bom porque, ao final da sessão, eu saio
melhor dali. O cinema é como um espelho. O que ele te mostra te põe em xeque”,
concluiu parafraseando Tarkovsky
— 5 filmes por Yuri Lins
– O Sacrifício, de Andrei Tarkovsky
– A Palavra, de Carl Dreyer
– As Harmonias de Werckmeister, de Béla Tarr
– Gerry, Gus van Sant
– Sem Sol, de Chris Marker
Texto e imagem reproduzidos do site: cinemaescrito.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário