Cinefilia: o que é isso?
Por João Batista de Brito
Em sentido amplo, a palavra cinefilia significa ´amor ao cinema´,
mas, o problema é que o amplo não é o sentido mais usado; assim, se todo
cinéfilo ama a arte cinematográfica, nem todo mundo que gosta de cinema pode
ser chamado de cinéfilo. Ou pode?
Para esclarecer eventuais diferenças semânticas é melhor
contar a história da palavra, que nasceu nos primórdios da década de 20.
Segundo consta, foi o escritor e teórico italiano Ricciotto Canudo quem
primeiro cunhou o termo ´cinefilia´, para, já nessa época, designar,
justamente, a paixão que se nutria pelo que ele mesmo conceituou como “a sétima
arte”.
Apesar das muitas associações do cinema mudo com as
vanguardas da década de 20 (futurismo, surrealismo, etc), o termo, contudo, só
passou a ser usado de forma sistemática a partir da segunda metade dos anos 40,
e num lugar muito particular: Paris. Foi no pós-segunda guerra que toda uma
inteligentsia francesa começou a voltar-se para o cinema com uma atenção toda
especial, numa atitude, não apenas diversional, mas de estudo e pesquisa. Foi
então e aí que começaram a proliferar os cineclubes, locais de culto à sétima
arte, mas também de reflexão sobre o valor estético, ético, humano e social
desse novo meio de comunicação.
Revistas e livros passaram a ser editados sobre a
importância artística do cinema, e logo logo, o resto do mundo acompanharia a
turma francesa nessa postura, reflexiva e estudiosa, perante a tela. Sem demora
o termo francês ´cinéphilie´ (pronuncia-se: /cinêfilí/, com acentuação oxítona)
seria traduzido para outras línguas, e daí a pouco estariam os anglo-americanos
falando de ´cinephilia` e os brasileiros de ´cinefilia´.
Inevitavelmente, a palavra nasceu em sentido restrito: o
cinéfilo concebido pelos franceses e divulgado mundo afora não era qualquer
espectador de cinema. Era um com cultura cinematográfica, o que significa dizer
que conhecia a história do cinema; interessava-se pela sua linguagem, sua
técnica, sua semiótica e sua teoria; não se limitava a ver muitos filmes, mas
também lia sobre o assunto e queria discutir, analisar, interpretar. Para os
franceses dessa época, quem não coubesse nesse ´modelo´ podia até ser um fã,
mas nunca um cinéfilo.
É desse sentido restrito da palavra que se ocupa o jovem
crítico e historiador – sem coincidência – francês Antoine de Baecque no seu
livro mais recente “Cinefilia: invenção de um olhar, história de uma cultura”,
que a CosacNaify acaba de editar entre nós.
Resultado de pesquisa exaustiva, o livro reconstitui todo o
clima cinefílico de um período que vai de 1944 a 1968 – tirante o amor comum ao
cinema, um período nada tranqüilo, sobretudo do ponto de vista ideológico, e
mesmo estético. De André Bazin a Henri
Agel, passando por Truffaut, Chabrol e Godard, nenhum dos grandes vultos fica
de fora da acalorada discussão sobre a arte do cinema. As revistas francesas da
época foram cascavilhadas, junto com jornais e correspondências dos envolvidos,
de forma a tornar o relato de Baecque o mais fidedigno possível.
Tentando não tomar partido, Baecque apresenta e analisa,
para o leitor, as várias “correntes de pensamento” por trás das intervenções e
propostas desses tantos pensadores do cinema – uns comunistas, ou mesmo
stalinistas; outros cristãos, ou mesmo católicos; outros ainda, direitistas, ou
mesmo fascistas; mas todos perdidamente apaixonados pelo “écran”.
Um fato suficientemente conhecido é, por exemplo, o modo
corajoso como os colaboradores da Revista “Cahiers du Cinéma” descobriram, para
o mundo, o valor do filme B americano, ao que opuseram a nefasta “qualidade
francesa”, e o livro de Baecque choveria no molhado se ficasse nisso. Não fica.
Um dos seus méritos é fazer ver que os “Cahiers” eram apenas
um dos fatores no meio de uma polêmica acirrada e, como dito, nada tranqüila.
Seu jeitão “neo-formalista” (assim eram apelidados os seus articulistas) fazia contraste
com o engajamento político de, por exemplo, uma revista de cinema igualmente
importante, a “Positif”, para não dizer que era, com freqüência, rebatido por
vozes individuais, como a do comunista intransigente George Sadoul, o mais
famoso historiador do cinema francês e mundial.
Para quem olha de fora parece ter sido fluente o processo
pelo qual Hitchcock – cineasta considerado meramente comercial em seu país –
foi então erigido em mito; o livro de Baecque nos dá uma idéia clara da reação
desfavorável que os futuros nouvelle-vaguistas enfrentaram, para conseguir esse
intento.
Das batalhas ideológicas da época era impossível não
desaguar em questões pessoais, e Baecque não hesita quando tem que fazê-lo.
Dois exemplos: (1) nada mais comovente do que ler o penoso esforço de
re-adaptação política do até então stalinista ferrenho Georges Sadoul, depois
da morte e expurgo do ditador russo, quando os seus podres horrendos vieram à
tona no governo de Kruschev. (2) igualmente, nada mais embaraçoso do que constatar
que o jovem François Truffaut era, sim, um reacionário assumido, homófobo
declarado, com atitudes éticas não propriamente elogiáveis, como tomar
emprestados roteiros inéditos de cineastas consagrados na França para, depois
de cordialmente devolvidos, estraçalhá-los na imprensa.
Uma constatação melancólica do leitor é a de como, no campo
da arte, os comprometimentos ideológicos atrapalham. Em várias instâncias, é
possível notar que muitas das opiniões mais radicais, assumidas e mantidas
publicamente com ênfase, contra filmes ou cineastas, advinham um pouco mais de
reações aos “inimigos” ideológicos e um pouco menos de convicções bem pensadas.
Fosse como fosse, é patético passar a vista sobre os equívocos interpretativos,
dos quais, – repito, malgrado a paixão comum ao cinema – poucos dos críticos e
historiadores da época escaparam.
Dou dois exemplos que me tocam de perto.
Fui sempre um admirador dos “Cahiers du Cinéma” dos anos
cinqüenta pelo empenho que tiveram em demonstrar a importância de cineastas
hollywoodianos, aparentemente comerciais, como Frank Tashlin, Otto Preminger,
William Wyler, Howard Hawks, Vincente Minnelli, Nicholas Ray, King Vidor,
George Cukor, Joshua Lolang, Fritz Lang, Richard Fleischer, Don Siegel, Tay
Garnett, Allan Dwan, Edgar Ulmer, e tantos outros. Contudo, nunca entendi por
que John Huston não fez parte dos eleitos, um cineasta que, desde o seu
primeiro “Relíquia macabra” (1941) só vinha crescendo e, tem mais, com o seu
tema recorrente do fracasso inevitável, corajosamente contradizia o chamado
“american way of life”.
Só agora, no livro de Baecque, descubro o porquê. É que
Huston estava entre os preferidos dos “esquerdistas” da revista “Positif”, e,
portanto, para não concordarem com os inimigos ideológicos, os “Cahiers” faziam
vista grossa de sua qualidade cinematográfica e o mantinham fora de seu
panteão. Pode?
Meu segundo exemplo é com Samuel Fuller, possivelmente o
cineasta que mais polêmica causou junto aos cinéfilos franceses da época, por
uma razão simples: no conteúdo, parecia fascista; na forma, se revelava um
mestre. Quando o seu “Anjo do mal” (“Pick up on South Street”, 1952) recebeu um
prêmio especial do júri de Veneza, a turma naturalmente se dividiu e vieram
elogios de um lado – o da direita – e pauladas do outro – o da esquerda.
Fulleriano inveterado, Luc Moullet inventaria uma fórmula para “explicar” o
cinema de Fuller com aquela frase, depois tornada famosa por Godard e Rivette:
“a moral é uma questão de travellings” – mas quem foi que disse que isso resolveu
o problema?
Pois bem, não muito tempo atrás, organizei uma sessão de
cinema com amigos, todos intelectuais sensíveis e inteligentes, para ver uma
tríade de filmes noir que eu, por sorte, havia gravado de um canal de televisão
paga. O primeiro filme exibido, “Um retrato de mulher” (Lang, 1944) arrancou
aplausos calorosos de todos, porém, o segundo filme, por mera coincidência
justamente o “Anjo do mal” de Fuller, foi quase vaiado, visivelmente por causa
de seu conteúdo supostamente anti-comunista. A reação ao filme foi tão negativa
que me espantei, e fiz esforços sobrehumanos para defendê-lo como um noir digno
de nota. Incrível, mas, mais de meio século depois da época enfocada no livro
de Baecque, as pessoas continuavam subestimando o cinematográfico em favor do
ideológico e repetiam os equívocos do passado. Pode?
Acho que nem precisa dizer o quanto aprendi e também o
quanto me diverti lendo o livro de Baecque. Os franceses podem não fazer o
melhor cinema do mundo, mas, com certeza, são os que melhor pensam o cinema – e
este livro é uma evidência gritante disso.
Só discordo um pouco do limite cronológico que o autor
propõe ao fenômeno da cinefilia que, segundo ele, teria acabado nos embates
políticos de 68. Ora, se a particular “cinefilia francesa” (sentido restrito do
termo) porventura acabou, por sua vez, não acabou a cinefilia universal
(sentido amplo).
O fato é que hoje o termo é usado de modo mais leve e mais
solto, para incluir tanto o especialista (crítico, historiador, pesquisador)
quanto o fã que acompanha os lançamentos e está minimamente familiarizado com
diretores, atores e atrizes. Enfim, uma questão menos de conhecimento e mais de
paixão.
Texto e imagem reproduzidos do site: imagensamadas.com
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