terça-feira, 23 de abril de 2019

O tubarão de Spielberg e outros tesouros do futuro museu...

Tiras de celuloide de diversas épocas no arquivo da Academia em Los Angeles

Publicado originalmente no site do jornal El País Brasil, em 3 de março de 2018

O tubarão de Spielberg e outros tesouros do futuro museu de Hollywood

Por Pablo Ximénez de Sandoval

Verdadeira caverna das maravilhas no território mágico do cinema, o Museu da Academia de Los Angeles exibirá pela primeira vez de modo permanente a história e os tesouros de Hollywood. Os sapatos de Judy Garland, o tubarão de Spielberg, a máscara de Alien… Viajamos em busca dessas joias por ocasião da realização da cerimônia do Oscar.

O CARTAZ na entrada do enorme terreno deixava bem claro: “Tudo está à venda, menos o tubarão”. Era uma área imensa que em Los Angeles se conhecia como “o ferro-velho de Hollywood”. Ali, no meio de Burbank, fazia décadas que os estúdios de cinema despejavam pedaços de cenários, objetos inúteis, carros, guindastes, de tudo. Qualquer um podia passar por ali e fazer uma oferta por qualquer coisa. Menos pelo tubarão.

Tratava-se do único boneco sobrevivente dos que foram feitos em 1975 para o filme de Steven Spielberg. O tubarão Bruce não foi usado no filme, mas tinha sido fabricado naquele ano com base no mesmo molde que os outros três. Esteve no parque dos estúdios Universal até que se desfizeram dele. Foi parar no depósito de sucata e ali passou 25 anos exposto a intempéries entre várias palmeiras, como um troféu no meio do terreno. Quando o negócio fechou, há dois anos, o dono o doou para um projeto que na época ainda parecia distante: o futuro Museu do Cinema da Academia.

Ninguém fabrica nada no cinema pensando que vá durar depois do último dia de filmagem. A história de Bruce é um exemplo dessa realidade. O que para o público é um tesouro, para o estúdio é lixo. Se não fosse pelo dono do ferro-velho, ou seja, o público, o tubarão não teria sobrevivido. Agora, a indústria do cinema norte-americano decidiu, pela primeira vez em um século, proteger seu legado. E, mais importante ainda, mostrá-lo. Fará isso em forma de primeiro museu do cinema na capital do cinema. O primeiro espaço, e se supõe que o definitivo, para se desfrutar da história, da ciência e da arte de Hollywood.

A ideia original de construir um centro destinado à memória do celuloide remonta a 1929, com Douglas Fairbanks e Mary Pickford como incentivadores

A previsão é que o Museu do Cinema da Academia abra as portas em 2019 como o lugar em que, enfim, o público possa ver de perto as tripas e a história da indústria da sétima arte. Em Los Angeles não existia nada assim. Kerry Brougher, diretor do museu, diz que será um “centro do mundo do cinema, um lugar ao redor do qual se possam juntar os amantes do gênero não só para ver uma exposição, mas também para se sentar para falar dos filmes, descobrir coisas novas e assistir a palestras”.

A pergunta óbvia é por que esse projeto demorou tanto tempo. Por que algo tão evidente, um lugar onde celebrar o cinema em Los Angeles, não existia? “Essa é a grande pergunta”, responde Brougher, e acrescenta: “Não foi por falta de tentativa. A Academia decidiu já em 1929 que queria fazer um museu do cinema. Na época, Douglas Fairbanks e Mary Pickford queriam fazer uma biblioteca e um museu. A biblioteca foi feita, mas o museu, não. Depois, nos anos cinquenta, voltou a ideia, mas não chegou a lugar algum. Sempre alguma coisa se interpôs. A Academia tinha outro projeto quando se abateu a crise de 2008 e precisou deixá-lo parado. Aquele projeto acabou se transformando neste. E aqui estamos. Finalmente está sendo construído, 90 anos depois que a ideia surgiu.” O tubarão Bruce é uma curiosidade minúscula dentro do material que Hollywood acumulou sobre si mesma nessas décadas. Em 2008, a Academia começou a adquirir agressivamente recordações de Hollywood que durante anos tinham sido deixadas em baús privados. Em 2012, por exemplo, comprou em um leilão os sapatos de rubis que Judy Garland usava em O Mágico de Oz, graças a uma doação de Leonardo DiCaprio. Hoje são uma das joias mais preciosas da coleção de lembranças e terão um lugar de destaque no museu. No total, há mais de 2.500 objetos entre tecnologia antiga, vestuário e material de produção e de divulgação.

 O único exemplar sobrevivente do tubarão Bruce, de Spielberg, 
no depósito de sucata em que passou 25 anos.

O arquivo da Academia se encontra em um edifício em plena Hollywood chamado Centro Mary Pickford para o Estudo do Cinema. Ali, o EL PAÍS é recebido por Jessica Niebel, a encarregada da exposição permanente do museu, para nos mostrar com exclusividade algumas das joias da coleção. E ali nos deparamos cara a cara com Alien. É a máscara original desenhada por H. R. Giger para o filme dirigido por Ridley Scott em 1979. Debaixo da cabeça comprida se pode ver uma correia com fivela com a qual se prendia à cabeça do ator “Veja a camada de pintura translúcida”, observa Niebel. “Foi desse jeito que conseguiram aquele brilho tão especial na tela.” De perto, a cor é espantosa, parece que respira. Uma repugnante maravilha.

Ao lado, Niebel mostra uma peruca vermelha de Harpo Marx. “Quando trabalhava no circo ele as usava na rosa, de palhaço, mas se deu conta de que não ficava bem em preto e branco.” Ouvindo as explicações de Niebel, pode-se imaginar perfeitamente as histórias que acompanharão a coleção no museu. Mais adiante vê-se a cadeira de produção feita sob medida para Shirley Temple. A Academia possui também a escrivaninha em que ela estudava durante as filmagens, os calçados de sapateado e o caixote em que ensaiou a mítica dança da escadaria em A Mascote do Regimento (1934). Tudo é presente da família de Temple. Niebel nos mostra depois uma velha máquina de escrever. “É a máquina em que Joseph Stefano escreveu Psicose”.

Aqui estão a máquina de descrever da qual saiu ‘Psicose’, as perucas de Harpo Marx, as portas do Rick’s Café de ‘Casablanca’, a nave 1B de ‘2001’…

Há mais. As portas do café Rick’s de Casablanca (1942), as tábuas do profeta Charlton Heston em Os Dez Mandamentos (1956), a nave 1B de 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), a maquiagem original do leão de O Mágico de Oz (1939). Definitivamente, milhares de tubarões que saíram à superfície e pela primeira vez serão protegidos e mostrados de forma permanente. Isso mais o que havia em porões e sótãos por toda a cidade. “Isto é Los Angeles e há muitos objetos assim”, diz Niebel. “Podemos trabalhar com muitos dos membros da Academia para conseguir mais peças.”

Não se trata de um mero gabinete de curiosidades. Não é um parque temático. É um centro de estudos da história e do futuro do cinema. Está projetado para ser o museu total sobre essa indústria. “É um museu sobre a ciência do cinema e a arte que sai dela”, nas palavras de Kerry Brougher.

Os objetos completam uma coleção de história do cinema que é das maiores do mundo. A biblioteca Margaret Herrick, que faz parte dos arquivos da Academia, está colecionando documentos desde os anos 30. Abriga mais de 80.000 roteiros, muitos com anotações; 12 milhões de fotografias, uma coleção de 61.000 cartazes de filmes e 104.000 desenhos de produção artística. Possui mais de 1.600 documentos de produção, como cartas, notas ou contratos que contam a história de Hollywood. Entre eles, os arquivos pessoais de Alfred Hitchcock, Katharine Hepburn, Cary Grant e John Houston.

E, claro, a coleção inclui cinema. Este arquivo tem mais de 190.000 títulos em filme e vídeo, entre os quais estão as cópias de todos os filmes ganhadoras do Oscar e de todos aqueles que a Academia em algum momento considerou que tinham valor. Há muito cinema independente, guardado com o único critério de que contribuiu com algo para a história, na opinião da Academia. O arquivo, no térreo do Centro Mary Pickford, é formado por quatro galpões cheios de latas nas quais os adesivos vão contando a história do cinema. Em uma fileira qualquer a gente se depara com Se meu Apartamento Falasse, Como era Verde o Meu Vale, Rebeca…

Para dar uma ideia do tipo de material guardado durante décadas nesse lugar, a arquivista May Huadong se senta diante de uma antiga mesa de edição KEM US-4 e coloca um rolo de 35 milímetros. “É uma peça muito rara”, observa. Os fotogramas começam a passar pela lanterna e no monitor aparece Greta Garbo. Caminha, sorri, baixa a cabeça, brinca com alguém que está do outro lado da câmera. São provas de vestuário de Rainha Cristina (1933). “Temos muita sorte quando encontramos algo como isto. E agora podemos compartilhá-lo.”

Tudo isso sempre esteve lá, à disposição dos pesquisadores. Hollywood começará a mostrar o acervo pela primeira vez a todo o mundo em um edifício que já se pode ver. As obras começaram em 2016 e a previsão é que terminem em 2019. A forma já é perfeitamente reconhecível. Fica no centro do mapa da cidade, na esquina da Wilshire com a Fairfax, ao lado do Museu de Arte do Condado de Los Angeles (LACMA) e diante do novo e vistoso Museu Petersen do Automóvel. “Esta área era chamada de Miracle Mile e é agora que começa a ser assim de verdade”, afirma Kerry Brougher durante uma visita guiada às obras. Uma estação de metrô está projetada para ser inaugurada em 2023 e terminar de dotar Los Angeles pela primeira vez em sua história de um centro turístico digno, em que de verdade haja algo para ver.

O financiamento do museu é privado em 100% mediante doações. Steven Spielberg e Jeffrey Katzenberg puseram 10 milhões de dólares cada um

O projeto, a cargo do escritório de Renzo Piano, consiste em remodelar um edifício art déco aerodinâmico dos anos 30, esse estilo Flash Gordon que ainda se observa em fachadas curvas ou trens futuristas e que forjou em boa parte a personalidade estética das cidades da Califórnia. Neste caso era um prédio conhecido justamente porque seu canto mais visível tem um enorme cilindro metálico. Esse cilindro será agora uma coluna dourada de latas de filme.

Ao edifício original será acrescida uma esfera que terá dentro um cinema com mil assentos. “Como somos um museu, não basta ter um projetor digital. Podemos projetar 16, 35 e 70 milímetros”, explica Brougher. “Até está equipado para projetar cópias em nitrato de celulose, que deixaram de ser produzidas por volta de 1950.” Um rolo de filme, por mais antigo que seja, não vale nada por si mesmo como objeto físico. Tem valor em função de que se possa ver o que há nele. Assim, uma das atrações será a projeção de filmes no formato em que estrearam, para serem contemplados exatamente como eram vistos na sua época. Em muitos casos, “a cópia que você estará vendo será a do ano de estreia”. Brougher afirma que as cores e os contrastes nos filmes de nitrato guardados no arquivo da Academia são conservados praticamente iguais. “É uma maravilha vê-los”, aconselha.

Mark Carroll, responsável pelo projeto no escritório de Piano explica que tinham feito teatros antes, mas não um cinema como este. “É um cinema dentro de um museu. O cliente [a Academia] dispunha de sua própria equipe de especialistas em imagem e som. No total, devemos ter entre 20 e 30 consultores entre especialistas de técnicas de projeção assessorando sobre a tela, o som,,,,”

Desde que o projeto finalmente foi posto em ação, alguns dos nomes mais poderosos da indústria se colocaram à frente. O Comitê de Arrecadação de Fundos começou em 2012 e é conduzido por Bob Iger, CEO da Disney, junto com a atriz Annette Bening e o ator Tom Hanks. Os principais mecenas foram Cheryl e Haim Saban, um dos casais de filantropos mais importantes do mundo do espetáculo, que puseram 50 milhões de dólares (163 milhões de reais). O prédio principal levará seu nome. Também fizeram importantes contribuições Jeffrey Katzenberg e Steven Spielberg, com 10 milhões cada um (32,5 milhões de reais). Em outubro, a Academia anunciou que havia alcançado a cifra de 300 milhões de dólares (975 milhões de reais) em doações de vários países. O objetivo é chegar aos 388 milhões de dólares (1,26 bilhão de reais), e falta pouco menos de 25%.

No conselho de administração do museu figuram nomes como Ron Meyer (vice-presidente da NBC Universal), Jim Gianopulos (CEO da Paramount), Kathleen Kennedy (presidenta da Lucasfilm), Ted Sarandos (chefe de Conteúdos da Netflix), Kevin Yeaman (presidente da Dolby) e Alejandro Ramírez Magaña, presidente da Cinépolis, uma das maiores redes de cinema do mundo. “Toda a comunidade de Hollywood levou isso muito a sério”, diz Ramírez Magaña em uma conversa por telefone desde a Cidade do México.

O exibidor mexicano afirma que sua própria presença no conselho indica a vontade da Academia de que o museu sirva como ferramenta para tornar Hollywood mais global. “Querem continuar o diálogo com o cinema que se faz em outras partes do mundo. Haverá ciclos de cinema de todas as partes; o museu se converterá em um ponto de encontro da comunidade cinematográfica mundial que não existia até agora em Los Angeles. Vai estabelecer uma conversa entre Hollywood e o cinema de todo o mundo”, explica Ramírez Magaña.

Todos os que falam sobre o museu acabam dizendo estas palavras em algum momento: “Já estava na hora”. É a primeira coisa que diz Jonathan Kuntz, professor de História do Cinema na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA). “Los Angeles necessitava de um museu de Hollywood já fazia meio século. Nunca tivemos algo grande que celebrasse a grande contribuição desta cidade à cultura mundial, que é Hollywood.”

Kuntz se compraz com os objetos mais vistosos da coleção, mas diz que o material que mais o emociona são os milhares de documentos de produção de um século de cinema que a Academia guarda. “Há pouco tempo, para uma pesquisa, estive na biblioteca vendo papéis de produção de Drácula, Frankenstein e os primeiros filmes de terror da Universal Pictures. Havia documentos sobre as negociações do estúdio com a censura da época.” É só um exemplo. As possibilidades da Academia para montar exposições temporais sobre temas específicos são “infinitas”, opina Kuntz. “Espero que seja espetacular.”

 Maquete do Museu do Cinema

 Cópias originais de filmes ganhadores do Oscar


Zoótropo de 1860

 Cadeira feita sob medida que Shirley Temple usava no período das filmagens

A máscara original de Alien.

Texto e imagens reproduzidos do site: brasil.elpais.com

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