Publicado originalmente no site Fora do Quadro, em 19 de
setembro de 2017
Contra a velha cinefilia: uma perspectiva feminista de
filiação ao cinema
Por Carol Almeida
“O amor pelo cinema é consubstancial ao amor dirigido às
atrizes”. Essa frase me persegue. Lembro exatamente da sensação que tive quando
esbarrei com ela pela primeira vez, e de como ela disparou, em um só instante,
aquele instante arrebatador, mais de 100 anos de história de cinema. Estava
tudo ali, bem explicadinho e resumido, o porquê de o cinema ter sido erguido
como um sólido edifício do pensamento do homem branco heterossexual. No único
capítulo dedicado a falar das mulheres num livro-referência sobre a história da
cinefilia, Antoine de Baecque escrevia, sem qualquer constrangimento, “que o
amor pelo cinema é consubstancial ao amor dirigido às atrizes”. Nesse único
capítulo dedicado a falar das mulheres num livro-referência sobre a história da
cinefilia, Baecque deixava muito claro que, na história dessa mesma cinefilia,
o tesão pelo cinema nascia tantas e tantas vezes, do tesão pelas mulheres em
cena.
Há toda uma narrativa romântica por trás dessa frase. A
mitologia é, ela mesma, uma imagem cinematográfica que vocês já devem ter visto
não apenas em um, mas em alguns filmes. Meninos brancos que, como todos os
meninos brancos, podiam andar sozinhos nas ruas, entravam em salas de cinema e
ali ficavam, sessão após sessão, como um certo ato de insurgência juvenil, e
aos poucos, na cumplicidade daquele gesto por si só desafiador de amar e temer
o cinema acima de tudo e de todos como diria Serge Daney, criavam ali uma
performance que compactuava de alguns rituais de passagens tais como,
naturalmente, a iniciação sexual desses meninos que podiam se masturbar no
escuro da sala diante dos pedaços de corpos de mulheres dispostas sobre o altar
da tela.
Por trás da frase “O amor pelo cinema é consubstancial ao
amor dirigido às atrizes” está também a ideia de que a espectatorialidade do
cinema é essencialmente, se não exclusivamente, formada por homens brancos.
Porque mesmo quando Baecque sugere que os atores homens podem igualmente ser
objetificados a adorados em cena, ele aponta para um espectador homem gay, nunca
para a mulher. A mulher espectadora de cinema será sempre aquela Cecília da
Rosa Púrpura do Cairo, que não é levada à sério nos rituais da cinefilia porque
seu interesse pelo cinema é bobo e inocente e infantilizado (e bem… a gente tá
falando de um filme de Woody Allen, então eu nem deveria me alongar tanto
assim).
O fato é que essa relação toda especial dos homens com o
cinema está direta e indiretamente vinculada à essa erotomania dos jovens
turcos, como diria o mesmo Baecque e a uma ideia de que a arte cinematográfica,
tal como a pintura e a fotografia, é uma arte do olhar e a autorização do olhar
é dada ao homem, e não à mulher, que histórica e mitologicamente é sempre
punida quando olha (Pandora) ou quando dar a ver (Eva). Mas colocar isso em xeque é tantas e tantas
vezes uma afronta à mística da cinefilia. Ou como diria Louis Skorecki no seu
texto “Contra a nova cinefilia”, “o
porquê das mulheres não fazerem parte da cinefilia me interessa menos que a
explicação de como os homens a vivem”.
Mas aí nesse mesmo texto desinteressado nesse grande
mistério de por que as mulheres não se sentem filhas do cinema, cine-filhas, ou
cinéfilas, Skorecki também traz uma provocação que nos serve: por trás da
obsessão pelos objetos, gestos, enquadramentos, pela erudição em diretores, por
listas de melhores isso e melhores aquilo, por trás do que nós amamos e do que
odiamos no cinema, quem somos nós, afinal de contas?
É para a subjetividade de sermos nós também o cinema que
amamos ou odiamos que me interessa olhar. Perceber, por exemplo, o quanto da
minha própria paixão pelo cinema surgiu e foi durante muito tempo mediada pelos
mesmos mecanismos dessa estrutura masculina do olhar e observar como isso
passou batido por mim diz muito sobre o pressuposto de que a cinefilia só
existe quando a minha subjetividade de ser mulher e não apenas isso, de ser uma
mulher lésbica, não pode ser uma questão para quem verdadeiramente “ama o
cinema”. Porque a instituição sagrada do cinema deveria estar acima de tudo e
acima de todos, acima inclusive da dignidade de mulheres, crianças, das pessoas
negras, dos indígenas, dos LGBTs e de qualquer pessoa que esteja longe dessa
figura que nunca é marcada na sua especificidade de ser homem branco hétero.
Acredito que esse é um ótimo momento, ou melhor, o momento
do é-agora-ou-nunca, da gente rever as premissas e regras da filiação ao
cinema. Penso que isso começa com o debate sobre a nossa subjetividade e sobre
as alteridades em jogo, mas passa também pelas coisas mais naturalizadas na
história da cinefilia. Porque repensar essa cinefilia passa por questionar,
inclusive, dentro do próprio pensamento feminista que se dedica a discutir o
cinema, a repetição de alguns tiques de ordem hierárquica e vertical que foram
estabelecidos pelas mesmas pessoas que mitificaram a erotomania da primeira
geração (e segunda e terceira…) da Cahiers du Cinéma.
Tiques tais como: lista dos melhores do ano, assistir a um
número excessivo de filmes em um curto espaço de tempo sem dar respiração para
o pensamento sobre esses filmes e estruturas de textos críticos que neguem
nossas subjetividades indóceis em nome de uma adequação ao que pode ser levado
a sério dentro da crítica. A gente precisa parar um pouco pra discutir até que
ponto essas ferramentas metodológicas nos colocam dentro do clube enquanto
figuras legítimas, até que ponto elas nos colocam dentro do clube apesar de
sermos quem somos e até que ponto a própria ideia de que é preciso fazer parte
do clube não é em si mesma anacrônica.
Me interessa então uma cinefilia menos verticalizada, mais
generosa, menos estratificada, mais risomática, menos da ordem do ritualístico
quase maçônico, mais da desordem do chega junto, menos ter certeza de tudo,
mais admitir que temos, todas e todos, pontos cegos e que precisamos aprender,
coletiva e individualmente, com eles. Pensar com o cinema e não sobre o cinema,
como diria Deleuze. Uma cinefilia um pouco menos voyeur e um pouco mais
voyager, como diria Giuliana Bruno. Ou seja, um amor pelo cinema que vai muito
além de sentir prazer visual com as imagens que estão distantes da gente, e
passe pela ideia de nós atravessamos e estamos atravessadas pelas imagens, que
o cinema toca, de fato, na nossa pele.
Aliás, a se falar em um nome como Giuliana Bruno, um debate
sobre a cinefilia precisa necessariamente passar também por questionar sobre as
fundações teóricas que usamos nos lugares que estão legitimados a falar sobre
cinema. Não existe nenhum tipo de avanço nessa discussão quando a gente ainda
tem, para citar um exemplo, a pós-graduação em cinema da USP que coloca na
bibliografia da prova de admissão do mestrado oito livros escritos
exclusivamente por homens e 15 filmes dirigidos exclusivamente por outros
homens. Será que textos de Lúcia Nagib e Maria Rita Galvão, para citar duas referências
teóricas que passaram pela própria USP, não podem realmente fazer parte dessa
bibliografia?
Não é possível também que, numa graduação de cinema em
qualquer universidade que tenha graduação de cinema neste país, você veja uma
mesma situação se repetir: alunos homens que já se sentem muito rapidamente
autorizados a lançarem seus blogs de cinema, enquanto as alunas mulheres
acreditam que precisam ler três estantes a mais de livros para escrever seu
primeiro texto. E isso diz respeito a algo que precede o cinema, mas que o
sistema-cinema mantém: ao fato de que as mulheres são desde cedo desencorajadas
a se colocar publicamente (mas essa é uma conversa longa que rende outra
prosa).
Talvez seja o momento de pensar numa cinefilia que tenha
outros pontos de partida. Uma que pense na possibilidade de sentir prazer
naquilo que bell hooks chama de “olhar opositivo”, ou seja, de ter tesão na
prática de um olhar crítico pra que a gente não tenha que anular nossas
subjetividades em nome do cinema. Uma que possa se usar de estratégias queers
de debater os filmes, no sentido de se colocar propositalmente à margem do
status quo e debochar um pouco dele. E uma que, sobretudo, não transforme o
cinema em um totem pro qual a gente deva se ajoelhar e rezar cinco vezes ao dia
com o corpo virado na direção da Cinemateca Francesa. Mas pensar nessa outra
cinefilia ou, talvez, na cinefilia do outro, é um exercício. E como todo
exercício, requer um pouco de dedicação e muita predisposição pra conversa. Até
para que este texto aqui possa, a partir deste momento, deixar de ser um
depoimento pessoal e se transformar numa construção coletiva.
O texto acima foi lido durante o debate das Elviras –
Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema, durante o 50° Festival de Brasília, do
qual participaram minhas colegas Cecília Barroso, Kenia Freitas e Samantha
Brasil.
Texto e imagem reproduzidos do site: foradequadro.com
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