domingo, 5 de agosto de 2018

Serviços de streaming versus colecionadores de discos



Publicado originalmente no site Outro Lado, em 25 de junho de 2018 

Serviços de streaming versus colecionadores de discos

 Por Paulo Roberto Elias

Os colecionadores de discos guardam obras favoritas para não perdê-las, pois os os serviços de streaming constantemente as retiram de catálogo.

Ao longo dos últimos sei lá quantos anos os serviços de streaming de vídeo, principalmente, foram derrubando as expectativas dos colecionadores de discos tornando o mercado de discos de vídeo mais escasso ou redundante. E o reflexo está aí, com eventuais consumidores abandonando compras em favor dos serviços.

Se alguém duvida, basta observar o sistemático fechamento de lojas físicas. Aqui no Rio de Janeiro, nem a tradicional Modern Sound aguentou o tranco.

O processo é cruel, mas inevitável. Ele mostra evidências de como o espírito de coleção de discos foi distorcido durante este tempo todo. E explico por que:

Décadas atrás, as salas de cinema foram entrando em processo de falência, até fecharem ou serem demolidas. Aqui no Rio, uma das últimas resistências era a do Cinema Paissandu, pertencente à Companhia Cinematográfica Franco Brasileira.

Depois de longo tempo fechado, o espaço vai ser reaberto para uma atividade comercial completamente diversa da sua atividade original. A obra de transformação chegou a ser embargada, porque o local havia sido considerado parte do patrimônio cultural da cidade, mas depois a “reforma” foi liberada por um detalhe burocrático achado na justiça.

O tempo nos mostrou que não há saída. Nos Estados Unidos a situação de fechamento foi muito mais dramática e precedeu a nossa por muitos anos. Lá os grandes estúdios começaram a perder espaço já em finais da década de 1950 e entraram em uma roda viva de perda de salas, com consequência imediata na distribuição de filmes.

Por que colecionar filmes?

Durante a minha infância e adolescência a única forma prática de ter cinema em casa era adquirindo um projetor e alugando um filme em 16 mm. Eu aprendi a projetar em torno de uns oito anos de idade, indo do filme mudo ao sonoro. Cheguei a ter em casa um então moderno projetor de 16 mm mudo, marca E. K. A., importado da Alemanha e vendido pela Óptica Lux, que ficava no centro da cidade. Mas, durou pouco porque o meu pai não tinha grana para alugar filmes a toda hora.

O projetor acabou sendo vendido para um vizinho rico, dono de empresas, mas um dia caiu no chão, quebrou e foi jogado no lixo. Esse vizinho gostava de ver filmes em casa e comprou um projetor sonoro marca Victor (por sinal, muito ruim), viu que eu gostava mais de projeção do que o filho, e então ligava para a minha casa e me pedia para ir projetar algum filme quase todo fim de semana.

Até a década de 1970 não se cogitava comprar uma cópia de qualquer filme em 16 mm. Na faculdade, uma professora de química orgânica comprou uma cópia de A Noviça Rebelde, por uma pequena fortuna. No nosso cineclube, os filmes eram alugados nas distribuidoras, e o aluguel não era barato.

Mas aconteceu que com o desaparecimento dos cinemas os estúdios enfrentaram problemas não só ao nível da distribuição, mas também no encalhe dos filmes nas prateleiras dos arquivos, os quais começaram a mostrar sinais de deterioração, uma delas a chamada “síndrome do vinagre”.

A solução foi, em primeiro lugar, começar a preservar os estoques (negativos de câmera, interpositivos, etc.), depois achar um meio de escoar este material para algum tipo de veículo alternativo. E neste ponto, o caminho óbvio foi (e ainda é, por incrível que pareça) a televisão.

Porém, a televisão sozinha não substituiria o cinema dentro de casa. Mesmo com projetores de 16 mm, capazes de projetar cópias em CinemaScope, uma vez munido da lente correta, a criação do cinema em casa (depois rotulado como “Home Theater”) era possível por causa da necessidade de se usar uma tela, e o cabo da caixa acústica era longo o suficiente para permitir o som ficar abaixo da mesma.

Muita gente com dois projetores conseguia simular uma sala de cinema convencional. E houve, na minha infância e adolescência, quem explorasse o filme 16 mm em salas de pequeno porte. Perto aqui de casa nós tínhamos uma, o Cine Santa Rita.

A solução definitiva para o home theater em vídeo veio da Philips holandesa, quando em 1972 ela desenvolveu o DiscoVision, um videodisco de 12 ou 8 polegadas com leitura ótica feita por pick-up com o uso de raio laser. Subsequentemente, o consórcio Philips-MCA abandonou o formato e o repassou à Pioneer, que rebatizou o disco como Laserdisc. Isto se deveu em grande parte pelo sucesso de vendas no Japão e a Pioneer queria conseguir o mesmo na América do Norte, termômetro do mercado mundial.

É importante notar que, com o videodisco ótico vários melhoramentos na reprodução foram naquela época alcançados. Um deles se refere à transcrição da trilha sonora analógica em dois canais sem nenhuma modificação do sinal da fonte. Por uma dessas coincidências o Dolby Stereo é um formato de áudio com uma matriz quadrafônica modificada e, portanto, pode carregar consigo quatro canais (neste caso três na tela e mais um surround) encarcerados em apenas dois canais.

Assim, o videodisco ótico transfere o filme com relativamente melhor imagem e com o som original Dolby Stereo preservado, e isso deu a base do primeiro tipo de home theater completo.

Para o fã de cinema, o grande apelo desta mudança foi a possibilidade de comprar um filme, e guarda-lo em casa para revê-lo quando quisesse, o que era proibitivo na época do 16 mm. Já que os cinemas estavam desaparecendo ali estava a oportunidade de se conseguir colecionar aquele material todo.

A pessoa que coleciona filmes porque gosta deles não o faz somente pelo sentimento de posse, mas sim pela tentativa de preservação de obras que tem importância pessoal ou na própria história do cinema, como filmes clássicos, por exemplo.

Portanto, o ato de colecionar filmes é, antes de mais nada, muito mais cultural na sua base do que propriamente um gesto meramente aquisitivo.

O que o streaming não dá ao colecionador

Quando recentemente o Netflix começou a oferecer o download de filmes, a primeira coisa que me veio à lembrança era que o serviço estava tentando aproximar o colecionador de volta.

Entretanto, existem empecilhos difíceis de transpor: o primeiro deles é que baixar e reproduzir é função do aplicativo em uso, o que na prática significa que o recurso pode não estar disponível em algum dispositivo de interesse do usuário, por exemplo, em aparelhos de televisão ou media players.

O segundo é ainda mais cruel: para assistir um filme baixado ele tem que ser salvo em um dispositivo de memória, e a quantidade em bytes não é pequena, em torno mais ou menos de 500 MB, se for de qualidade alta.

Em se tratando de dispositivos como celulares ou tablets, onde o espaço de memória anda a prêmio, guardar mais de um filme para ver depois pode se tornar um problema cuja solução envolve a aquisição de memória externa, na forma de um cartão micro SD.

A retirada sistemática de títulos de todos os serviços de streaming impede na prática o hábito que todo colecionador tem de revisitar um filme que ele gosta!

Para mim, pessoalmente, o serviço de streaming (eu uso dois) não deixa de ser uma boa alternativa à programação da TV por assinatura. Irá fracassar como tal se a política de preços começar a ficar abusiva, o que pode acontecer a qualquer momento, se houver desatenção com o consumidor!

Ficou na memória

Quem frequentou cinemas de rua toda semana, sozinho, acompanhado com os amigos, com a namorada ou esposa, sabe do peso que isto teve na sociedade, que jamais, em tempo algum, home theater nenhum vai compensar, não importa o custo da instalação. A qualidade intrinsecamente doméstica de um home theater, sem a ajuda da plateia ao lado, descaracteriza um aspecto fundamental do cinema, que é assistir filmes acompanhado de pessoas sentadas ao lado, e de sentir a mesma reação coletivamente. Com isso um home theater pode se tornar, e geralmente é, um hábito super solitário!

Eu olho aquela foto do Paissandu e me lembro da época da faculdade, quando colegas do campus se dispunham a ir assistir um filme complexo e na saída entrar no Oklahoma, para um chope e/ou uma pizza, naquela época um programa ao alcance de qualquer um, principalmente de nós, que estávamos sempre com o bolso vazio. E o mesmo se repetiu quando abriu o Cinema Um, que ficava na Rua Prado Junior, em Copacabana.

Bem verdade que o peso financeiro de um home theater de qualidade razoável é muito alto. Isto em falar na aceitação da instalação pelos casais. Desde cedo, como o hobby de construção de um home theater é predominantemente masculino, os americanos costumavam citar o que eles chamavam de WAF (ou Wide Acceptance Factor), que é a medida de aceitação de componentes pela esposa do entusiasta, ou seja, da (in)tolerância pela permissão de passar fios, adicionar mais caixas, etc.

O fator WAF impediu vários dos meus amigos em instalar ou melhorar um home theater dentro de casa, e em pelo menos um caso onde o próprio marido tinha pavor de deixar a fiação de caixas exposta no ambiente.

Talvez o pior aspecto da construção de um home theater dedicado seja o da falta de espaço adequado. A maioria dentre as pessoas que moram em apartamentos irão ter todo tipo de dificuldade de conseguir conciliar o espaço disponível com a melhor configuração do equipamento instalado.

Colecionar filmes pode ser um hábito que está morrendo, mas eu sou um que espera que ele nunca morra. A propósito, a realidade em outros mercados é diferente da nossa. Na América do Norte, que é a principal referência deste segmento, as vendas continuam firmes, o Blu-Ray 4K com maior número de lançamentos no ano que passou, tornando ainda possível colecionar sem o usuário final se sentir desamparado!

Texto e imagens reproduzidos do site: .outrolado.com.br

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