quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Cinéfilos e "assistidores" de filmes

Cinema Paradiso (1988)

Publicado originalmente no site Cinemação, em 31 de janeiro de 2018 

Cinéfilos e "assistidores" de filmes 

Por Kley Coelho * 

Se você veio até este site e está lendo este texto, é porque você se interessa por cinema; e sendo assim, você está sempre interessado em conhecer um pouco mais sobre a Sétima Arte. Em “Cinema Paradiso”, o pequeno Totó é fascinado pelo cinema, e encontra no projecionista Alfredo o passaporte para o mundo mágico dos grandes filmes. Somos quase todos Totó; estamos em uma fascinante jornada pela busca do conhecimento cinematográfico.

Mas não é exatamente assim que funciona para todos, ou pelo menos não é assim que acontece. Se cada cabeça é um mundo, e pensamos relativamente diferente um dos outros em relação a algumas coisas, principalmente no que diz respeito a preferências, então, sem querer parecer redundante, mas sendo, é de se esperar que o modo de ver e encarar o mundo vai diferenciar de pessoa para pessoa. Mas afinal de contas porque estou dizendo isso? Eu explico.

Certa vez conheci um jovem em uma faculdade, e aos poucos ele ficou sabendo de meu gosto pelo cinema. Como era um ambiente de pessoas ligadas ao cinema, esse rapaz de alguma forma queria que o notássemos ali. Em um certo dia ele chegou até mim e disse: “Quando eu tinha 12 anos, guardava anotado em um caderno todos os filmes que já assisti, e a contagem até aquele momento ultrapassava 700 filmes”. Ele mentia, e porque eu sabia disso? Certamente não porque eu duvidasse que alguém com 12 anos pudesse chegar à marca de 700 filmes assistidos (ainda que não impossível, é raro isso acontecer, creio eu), mas porque aquele jovem mentia para aparentar algo que nunca foi.

Além de mentir, ele também não era muito esperto e caia fácil em qualquer “pegadinha”. Bastaria alguém chegar até ele e lhe perguntar se o grande diretor Harry Lincoln era bom no que fazia, e ele simplesmente responderia “Sim, muito bom”. Sabemos no entanto que, até onde se saiba, nunca existiu um diretor chamado Harry Lincoln, ou pelo menos não um grande diretor com esse nome. Ou se lhe perguntassem qual o melhor filme de Roman Polanski: “Manhattan” ou “Os Bons Companheiros”, ele responderia um dos dois filmes.

Isso me lembra aquelas disputas nas redes sociais sobre “Quem assiste mais filmes”, uma disputa que “irá definir” quem é o “Cara dos filmes”. Me pergunto qual é a necessidade disso. Qual é a necessidade em ostentar quantidade de filmes assistidos? Cinefilia vai além de qualquer disputa, porque o que vale não é quantidade, mas qualidade. Não adianta assistir 3 filmes por dia para, no final do ano, ultrapassar 1000 filmes vistos, pra depois se exibir em sites como Filmow e Letterboxd, com uma grande quantidade de filmes marcados como “vi”. Os críticos franceses da Cahiers du Cinéma assistiam muitos filmes, mas não era contagem de filmes que os interessavam, mas o que eles aprendiam com cada um daqueles filmes. Eles estudavam, analisavam, escreviam e compartilhavam ideias e informações sobre o filmes vistos  – em boa parte nos cineclubes.

É bobagem essa corrida incessante em querer ver tudo, sendo que ninguém jamais conseguirá assistir a todos os filmes já lançados. São dezenas de milhares de filmes já produzidos em quase 120 anos desde a invenção do cinema, e outros tantos são produzidos a cada ano; uma quantidade de filmes que ninguém jamais conseguirá assistir em sua totalidade. O que se pode fazer é pegar as frequentes listas dos melhores filmes de todos os tempos e tentar assisti-los, ou ir atrás do que realmente seja de seu interesse.

Mas há mesmo a necessidade em se apoiar em números, quando podemos nos apoiar em deixar que a vida siga seu curso, nos deixando livres para assistirmos o que quisermos e quando quisermos? Porque uma coisa eu sei: assistir filmes sem parar um dia acaba cansando, estacionando no meio do caminho, porque estabelecer metas gigantescas tende a ser no fundo uma espécie de obrigação pessoal que um dia irá falhar. Lembro que em uma dessas disputas, alguém em um comentário questionou da seguinte forma: “Você não sai, não namora, não estuda, não trabalha, não faz mais nada na vida?”. Disputas pessoais se distanciam de cineclube, importante complemento para a formação cinéfila. Os cineclubes não apenas exibem filmes – e não estão preocupados com isso -, a questão maior é depois de cada sessão o grupo discutir o que acabou de assistir. Porque assistir por assistir, dá pra fazer isso em casa numa boa. Os cineclubes não se importam com quantidade, o que importa é o que você assimilou de cada filme, o que eles te proporcionaram, a experiência e aprendizagem que você tirou deles. Assistir 1000 filmes durante o ano e não aprender nada, ou quase nada sobre eles, é menos válido do que assistir 50, 100 ou 200 e conhecer a importância de cada um.

Existem cinéfilos e existem ‘assistidores’ de filmes. Cinéfilo como sabemos é aquela pessoa que, além de assistir aos filmes, vai além das sessões; indo atrás de informações que enriqueçam a obra, se interessa em saber quem dirigiu e quem atuou nas produções, os bastidores, etc. Um ‘assistidor’ assiste por assistir, por pura diversão, sem maiores compromissos.

O famoso crítico norte-americano Roger Ebert (falecido em 2013) assistiu milhares de filmes durante sua vida, mas isso demandou tempo. Ele se atentava mais em ver os filmes de acordo com o tempo que ele tinha disponível. Todos sabem que ele precisava assistir aos filmes para assim criticá-los, mas ele sabia que não adiantaria correr para deixar o caderno repleto de filmes catalogados e assistidos. Era preciso disciplina, não uma urgência no intuito de ir na redes sociais ou rodas de amigos e dizer: “Olha o tanto de filmes que assisti durante o ano”, aí os outros responderem: “Uau”, ou simplesmente não dar a mínima, porque sabem que você só quer se exibir.

Assista a todos os filmes que você puder assistir; vá atrás da filmografia de grandes diretores e atores; veja um bom número possível de clássicos e/ou filmes contemporâneos; convide seus amigos para algumas boas sessões. Apenas não faça disso uma espécie de Reality Show onde cada um precisa provar quem consegue mais isso ou aquilo. Não faça disso um jogo de egocentrismo, não tente impressionar as pessoas dessa forma. Tentar assistir de tudo te impede de ser seletivo, te impede de ver o que realmente vale a pena ser visto. Lembre-se: quantidade é bom, mas qualidade é melhor ainda.

-------------------------------------
* Kley Coelho - Formado em Cinema e Audiovisual, sempre fui um admirador da Sétima Arte, literatura e HQs. Fascinado por westerns, noir, dramas, romances e épicos, tenho como filme preferido o inigualável "E o Vento Levou".

Texto e imagem reproduzidos do site: cinemacao.com

Nenhum comentário: