O proprietário Marcelo Rosendo e o balconista Fabiano Geraldo,
profundo conhecimento de cinema.
Publicado originalmente no site G1 SP, em 28/02/2017
Oásis da cinefilia
Por André Azenha
Em 19 de janeiro, enquanto dava uma olhada no celular, me
deparei com uma reportagem interessante do programa Metrópolis, da TV Cultura,
sobre onde encontrar filmes clássicos. No vídeo, disponibilizado pelo canal da
emissora, há entrevistas com representantes da distribuidora Versátil, que faz
excelente trabalho lançando pérolas do cinema internacional em home vídeo, e da
produtora Zeta Filmes, responsável por curadorias de festivais, mostras e
exposições sobre o universo audiovisual.
Perguntei-me por que não citavam as videolocadoras. Talvez
você pense: André, elas nem existem mais. Ledo engano. O mercado de locação de
filmes pode não ser o mesmo de dez, 15, 20 anos atrás. Mas segue. Há cerca de 2
a 3 mil videolocadoras em solo brasileiro. Pensei tanto nisso que fiz um post
no mesmo dia, citando a Vídeo Paradiso, cuja história chegou aos 25 anos em
agosto do ano passado. E em seguida liguei para os donos, a fim de
entrevistá-los. Cinco anos atrás, fiz uma grande reportagem sobre a história da
loja em outro site. Era o momento para um novo papo.
Escrever sobre a Vídeo Paradiso - o título homenageia o
famoso filme de 1990 dirigido por Giuseppe Tornatore, “Cinema Paradiso” – me
fez refletir sobre duas questões.
Uma delas é aquela velha história de que, para entendermos o
presente e planejar o futuro, é preciso conhecer o passado. E para qualquer
crítico de cinema que se preze e tente realizar seu trabalho com um mínimo de
dignidade, conhecer os filmes clássicos, os cults, redescobrir títulos, é
obrigação. Algo naturalmente apaixonante e necessário na construção do
conhecimento acerca do cinema. Todos os grandes críticos possuem conhecimento
histórico.
Grandes cineastas também. Basta lembrarmos de todos da
geração Nouvelle Vague francesa surgidos na revista Cahiers Du Cinema. Ou, mais recentes, Martin Scorsese e Quentin
Tarantino. Para citar alguns. Já escutei de um colega “crítico” que conhecer
história do cinema, ter memória, é bobagem e que o IMDB (o mais famoso bando de
dados cinematográfico da internet) existe para isso. Bobagem é tal afirmação
infame, infeliz, tentando diminuir colegas de profundo saber e justificar sua
falta de estofo, background. A crítica de qualquer meio artístico vai muito
além do conhecimento técnico. Também ouvi pretendentes a cineastas esnobarem
qualquer tipo de conhecimento histórico do cinema. Logicamente a carreira de
nenhum deles decolou.
Ir a um espaço como a Vídeo Paradiso se traduz numa
experiência muito maior que a mera locação de filmes. Ao menos para quem ama
cinema. Foi lá, por exemplo, que descobri a fundo, durante conversas com um dos
balconistas, o Vinícius Barroso Araújo, a filmografia do cineasta alemão de
origem turca Fatih Akin.
A outra questão a que me refiro acima renderia um debate
complexo. Basicamente é sobre como, atualmente, nos deixamos levar pela
ansiedade, a rapidez, a urgência e a correria impostas de todos os lados, pelas
redes sociais, amigos, a mídia. A pressão por resultados, compromissos. E como
deixamos de sentir mais as situações, as experiências. O que me remete ao
cardiologista Doutor Anésio Ignacio Dau. Sempre que vou ao seu consultório, ele
faz questão de conversar, perguntas do meu dia a dia, checar pulsação,
batimentos cardíacos, respiração, circulação, o peso, etc. Cada consulta leva cerca
de meia hora. Ou mais. Confio nele. Ele não faz o tipo de “medicina fast food”,
aquela em que vários médicos mais jovens executam: mal olham ou tocam o
paciente e já saem receitando remédios. “Gastam” menos de cinco minutos.
Ir à Paradiso não é voltar no tempo. Não é estar em local
obsoleto. Marcelo Rosendo, que dirige a locadora ao lado da esposa Rosana
Castro, sempre faz questão de ressaltar isso. “Toda vez que algum jornal ou
veículo de imprensa nos procura é para fazer alguma matéria tratando nosso
setor como se fosse algo do passado, um fóssil”.
Logicamente surgiram, nesses anos, serviços que possibilitam
certa facilidade ao espectador na busca por filmes. Não vou condenar os
serviços de streaming e nem quem baixa filmes e músicas ilegalmente. O que
reflito aqui é a questão da troca, do aprendizado, do contato. E ir à Paradiso,
nesse sentido, no contexto da sociedade contemporânea, não poderia ser algo
mais moderno no sentido da vanguarda, da provocação, de ir contra a maré. De
desfrutar a vida e no meu caso, minha paixão, o cinema, do que vê-la
passar.
Vejamos: o mais famoso serviço de streaming tem cerca de
três mil títulos. A Paradiso, 17.500. Gosto desse serviço de streaming pelo
conteúdo original que ele proporciona, suas séries, documentários e longas de
ficção próprios, exclusivos. Não pelo catálogo. Se eu quero um clássico, um
cult, e quero vê-los com imagem bacana, vou à Paradiso, a única videolocadora
que ainda traz os lançamentos de home vídeo a Santos, em DVD e Blu-ray, sejam
eles longas recém-saídos do cinema ou os clássicos da Versátil. Há poucas outras (dá para contar em uma mão)
na cidade que não lançam novidades ou estão se desfazendo de seus acervos.
Indo lá à procura do que pretendo, ainda posso descobrir
outras pérolas, conversar com o próprio Vinícius (oito anos de casa), o
Marcelo, a Rosana ou o Fabiano Geraldo, funcionário há 15 anos. Todos eles
gostam de cinema, dos seriados, acompanham as novidades e possuem conhecimento
histórico. Há o fator humano que torna a experiência diferente, especial. Algo
que não encontro em nenhum outro tipo de serviço, por mais modernos que sejam
os softwares que tentam “entender” o meu gosto e os meus desejos. E não, não
escrevo esse post meramente por amizade ou para fazer algum tipo de propaganda
- pensar isso ao ler essa matéria só pode me soar mesquinho. Escrevo,
simplesmente, por necessidade.
“Recentemente fiz uma pesquisa. O IMDB possui uma lista com
os 250 maiores filmes de todos os tempos, em escolha de seus usuários. Fiz a
busca num famoso serviço de streaming e encontrei pouco mais de cem. Aqui temos
245. Os cinco restantes não foram lançados nem em DVD nem em Blu-Ray no país”,
defende Marcelo.
2016 foi o pior ano financeiro da locadora. “Primeiro veio a
pirataria. Ainda assim conseguíamos nos manter. Há colecionadores, pessoas que
gostam de ver o filme em mídia física. A crise financeira no Brasil piorou a
situação. As pessoas estão sem dinheiro, mesmo a locação sendo um produto
relativamente barato. Fica difícil analisarmos números agora no meio da crise.
Se os números continuarem como em 2016, teríamos que parar. Não é o objetivo.
Temos esperança de recuperação da economia brasileira. Assim podemos seguir.
Não depende mais apenas do mercado de vídeo, mas do país”, explica o
empresário.
Até dois anos atrás, Marcelo também fazia trabalho
freelancer de engenharia na Alfândega de Santos. Rosana faz tortas e salgados
por encomenda. Ele, Rosana e os dois filhos moram na casa onde fica a loja.
“Temos essa facilidade. Mesmo assim está difícil”, afirma.
Pergunto se a preguiça do consumidor pode ser um fator
preponderante na diminuição do movimento. “Poder ser. Temos delivery há alguns
anos. A preguiça de vir à locadora poderia ser suprimida por isso. Teria muito
mais prazer de fazer uma caminhada a pé. É muito mais gostoso do que ir ao
supermercado, que é uma obrigação. Preferiria muito mais ter o delivery do
supermercado e ir à locadora.”, diz o proprietário.
“As pessoas abandonaram o mercado pela pirataria. Os
distribuidores tiveram outra situação. Demoraram para entender a crise. Nunca
tiveram um bom relacionamento com as videolocadoras. Era um mercado muito
grande e eles colocavam os preços que queriam. O diálogo era difícil. Não havia
concorrência pelo mesmo título. Cada filme tem sua distribuidora. Todo dono de
locadora sempre reclamou disso. Diferente do que ouvimos falar de outros
segmentos. Do fornecedor tratar bem o comerciante. O mercado de vídeo nunca
teve isso. Tínhamos essa diferença, essa dificuldade de relacionamento.
Demoraram para admitir a crise no setor com o advento da pirataria. Com os
fechamentos das locadoras que perceberam. As distribuidoras se juntaram,
cortaram despesas para sobreviver. Eu gostaria que a imprensa fizesse um
levantamento de como as pessoas assistem filme hoje em dia. Nem nos camelos
compram mais. As pessoas baixam filme pela internet numa cidade como Santos. Os
camelos sobrevivem em cidades em que a internet é mais difícil”, diz. “Exceto o
cinema, claro. Estamos falando de ver filme em casa”.
Interessante, nessa história toda, é que o público
consumidor da Paradiso é bastante diversificado. De jovens a idosos. Para ter
uma ideia da diversidade de público e procura, entre os dez filmes mais
alugados de 2016 estão produções que vão desde a comédia dramática francesa
“Samba”, o drama policial “Sicário”, aos blockbusters “Star Wars: O Despertar
da Força” e “Divertidamente” (animação). Esses dois últimos pertencentes à
Disney.
Em São Paulo, a 2001, locadora que chegou a ter sete
unidades de locação e venda e recebia inclusive lançamentos de livros, fechou
suas portas. No entanto, há muitas cidades do Brasil onde as locadoras seguem.
Na própria capital paulista, Sorocaba (interior de São Paulo) e Poços de Caldas
(Minas Gerais), para ficar em municípios que conheço e fui recentemente.
Santos, que recebeu o título de Cidade Criativa em Cinema da
Unesco, ainda tem seu Oásis da Cinefilia. Vale ressaltar, inclusive, que parte
desse título se deve à própria Paradiso, apoiadora da maioria das iniciativas
ligadas ao audiovisual da região: Curta Santos, Cineme-Se, Cineclube Lanterna
Mágica, Cinemateca de Santos, Museu da Imagem e do Som de Santos, Cine
Comunidade e vários outros projetos contaram, em algum momento, com sua
parceria.
Com tantos apaixonados por cinema, é importante entender e
valorizar o papel da Vídeo Paradiso. Pessoalmente, não há nada melhor que viver
as experiências completas na busca de um filme. Seja indo à videolocadora,
conversando, trocando ideias, ou ao próprio cinema e vendo o lançamento na sala
escura. O streaming é legal, importante, veio para ficar. Um não exclui o
outro. Certas coisas, porém, não podem simplesmente serem esquecidas. Vide o
ressurgimento do vinil. Quem ama cinema entenderá.
A Vídeo Paradiso fica à Rua Nabuco de Araújo, 60, no
Boqueirão.
Seu site é o videoparadiso.com.br
PS: Ainda pretendo, quem sabe, contar a história da Paradiso
em filme. A ideia seria narrar sua trajetória e, ao mesmo tempo, traçar um
panorama do home vídeo no Brasil. 25 anos não são poucos nesse mercado.
Texto e imagens reproduzidos do site: g1.globo.com/sp
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