Foto de um certificado de censura. Note-se a data da emissão e da validade.
Publicado originalmente no site da revista IDEIAS, em 11 de junho de 2018
Cinema clandestino
Por José Augusto Jensen
Após 1964, e enquanto durou o regime militar, para qualquer
filme, documentário, trailer, era obrigatório o certificado de censura, que,
além do documento em papel, tinha que ser projetado antes de cada apresentação,
seja em cinemas, clubes ou qualquer exibição pública. Era emitido pelo “Serviço
de Censura e Diversões Públicas”, departamento da Polícia Federal. Além da
classificação por faixa etária, tinham um prazo de validade, normalmente cinco
anos. Depois disso, o filme tinha que ser retirado de circulação e destruído, a
não ser que a distribuidora renovasse o certificado, o que era raro, pois a
cópia já estaria em péssimas condições e, normalmente, o filme já teria perdido
seu valor comercial. Alguns cinemas promoviam exibições de filmes famosos, como
“última oportunidade de ver a obra”. O fiscal da distribuidora do filme, para
garantir a inutilização da cópia, dava uma machadada em cada rolo de película.
Esse material era vendido a fábricas de vassouras e escovas onde, quimicamente decomposto,
virava as cerdas.
Mesmo depois da censura militar, quando se promoviam
estreias simultâneas em diversos cinemas do Brasil (às vezes chegavam a
quatrocentas cópias), o que fazer com tanto material sem valor comercial?
Preservavam-se algumas e o restante ia para as fábricas de vassouras. O Fábio
Campana ou o Dico Kremer já podem ter tido suas residências varridas com um
Fellini, um Kurosawa, ou seus sofás e tapetes escovados com algum Arthur Penn
ou Bergman. Hoje, com o cinema digital, os filmes vêm em HDs, que podem ser
apagados e regravados.
Em meados de 1970, o crítico e amigo Estevão Harbach abriu
uma empresa de aluguel e revenda de equipamentos cinematográficos, a Cinearte,
tendo como clientes empresas, eventos, colégios, reuniões, aniversários. Chegou
a distribuir alguns poucos filmes, principalmente direcionados a seus clientes,
também alugando de grandes distribuidoras. Para suas atividades comerciais e
moradia, alugava enormes casas, e a sala principal virava uma ótima sala de
projeção, onde se projetavam filmes fora do circuito, documentários, tudo sem
programação prévia, normalmente à noite, para amigos que apareciam ‒ tudo,
claro, conforme seu gosto pessoal. Nunca vi projeções de filmes pornôs. Com o
pai como cônsul da Áustria, ele tinha acesso a filmes de outros consulados que
existiam em Curitiba e que nunca passariam nos cinemas comerciais, pois não tinham
o tal certificado. Um dos famosos endereços da Cinearte foi no Alto da Glória,
ficando conhecida como “A mansão”. Normalmente eu operava e, conforme o caso,
mantinha os projetores 16 mm, que era a bitola principal com que a Cinearte
trabalhava. Por lá apareciam o Lélio Soto Maior Júnior, o Fernando A. F. Bini e
a Celine, a Vânia Mercer, o João Ney Macedo e outros, num ambiente maravilhoso
de conversas com a casa sempre aberta, um cineclube informal.
Com os contatos que o Estevão estabeleceu
para sua empresa, acabou encontrando na então chamada “boca” em São Paulo, na
rua do Triunfo, onde se concentravam as distribuidoras e as fornecedoras de
materiais para cinemas, uma rede de pessoas que subornavam alguns fiscais
destas distribuidoras (fiscal também é para isso), interceptando as cópias
agora sem certificado e que não poderiam mais ser usadas. Numa das vezes que o
acompanhei a São Paulo, fiquei pasmo ao conhecer um colecionador, que, num
galpão nos fundos da residência, acomodava enorme quantidade de rolos de
película, salvos dos machados e das fábricas de vassouras. Aí começavam as
negociações de compra, pelo valor da obra ou pelo estado da cópia. Por sorte o
Estevão chegou a comprar obras-primas que não interessavam ao colecionador, como,
por exemplo, “No tempo das diligências” (Stagecoach, 1939) produção clássica
dirigida por John Ford, com John Wayne e Claire Travor, que talvez ele tivesse
em duplicata, pois era louco por faroestes. Depois do afrouxamento da censura,
esta cópia foi exibida pelo Aramis Millarch no Teatro Paiol lotado.
Para trazer os filmes de São Paulo,
colocávamos os rolos em meio a roupas no porta-malas do carro e, à noite,
pegávamos a Regis Bittencourt para Curitiba, rezando a cada vez que passávamos
por um posto fiscal para não sermos parados e provavelmente presos. Depois eu
revisava estas cópias, emendava as arrebentadas, remontava-as algumas vezes
para mais umas noitadas de cinema na “mansão”. Um filme que passamos diversas
vezes foi “Sonhos dourados” (TheJolsonStory, 1946). A produção da Columbia em
cores era a biografia musical idealizada de AlJolson, interpretada e dublada
por LarryParks e dirigida por Alfred E. Green. O “salvamento” de filmes nos
colocava como intrépidos burladores da ditadura vigente, dando um gosto
especial às sessões clandestinas. O Estevão tornou-se um colecionador de filmes
em película. Hoje mora nos Estados Unidos e tem uma coleção enorme em formato
digital, formando a “FilmCollector’sSocietyofAmerica”.
Texto e imagens reeproduzidos do site: revistaideias.com.br




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