Tiras de celuloide de diversas épocas no arquivo da Academia
em Los Angeles
Publicado originalmente no site do jornal El País Brasil, em 3 de março de 2018
O tubarão de Spielberg e outros tesouros do futuro museu de
Hollywood
Por Pablo Ximénez de Sandoval
Verdadeira caverna das maravilhas no território mágico do
cinema, o Museu da Academia de Los Angeles exibirá pela primeira vez de modo
permanente a história e os tesouros de Hollywood. Os sapatos de Judy Garland, o
tubarão de Spielberg, a máscara de Alien… Viajamos em busca dessas joias por
ocasião da realização da cerimônia do Oscar.
O CARTAZ na entrada do enorme terreno deixava bem claro:
“Tudo está à venda, menos o tubarão”. Era uma área imensa que em Los Angeles se
conhecia como “o ferro-velho de Hollywood”. Ali, no meio de Burbank, fazia
décadas que os estúdios de cinema despejavam pedaços de cenários, objetos inúteis,
carros, guindastes, de tudo. Qualquer um podia passar por ali e fazer uma
oferta por qualquer coisa. Menos pelo tubarão.
Tratava-se do único boneco sobrevivente dos que foram feitos
em 1975 para o filme de Steven Spielberg. O tubarão Bruce não foi usado no
filme, mas tinha sido fabricado naquele ano com base no mesmo molde que os
outros três. Esteve no parque dos estúdios Universal até que se desfizeram
dele. Foi parar no depósito de sucata e ali passou 25 anos exposto a
intempéries entre várias palmeiras, como um troféu no meio do terreno. Quando o
negócio fechou, há dois anos, o dono o doou para um projeto que na época ainda
parecia distante: o futuro Museu do Cinema da Academia.
Ninguém fabrica nada no cinema pensando que vá durar depois
do último dia de filmagem. A história de Bruce é um exemplo dessa realidade. O
que para o público é um tesouro, para o estúdio é lixo. Se não fosse pelo dono
do ferro-velho, ou seja, o público, o tubarão não teria sobrevivido. Agora, a
indústria do cinema norte-americano decidiu, pela primeira vez em um século,
proteger seu legado. E, mais importante ainda, mostrá-lo. Fará isso em forma de
primeiro museu do cinema na capital do cinema. O primeiro espaço, e se supõe que
o definitivo, para se desfrutar da história, da ciência e da arte de Hollywood.
A ideia original de construir um centro destinado à memória
do celuloide remonta a 1929, com Douglas Fairbanks e Mary Pickford como
incentivadores
A previsão é que o Museu do Cinema da Academia abra as
portas em 2019 como o lugar em que, enfim, o público possa ver de perto as
tripas e a história da indústria da sétima arte. Em Los Angeles não existia
nada assim. Kerry Brougher, diretor do museu, diz que será um “centro do mundo
do cinema, um lugar ao redor do qual se possam juntar os amantes do gênero não
só para ver uma exposição, mas também para se sentar para falar dos filmes,
descobrir coisas novas e assistir a palestras”.
A pergunta óbvia é por que esse projeto demorou tanto tempo.
Por que algo tão evidente, um lugar onde celebrar o cinema em Los Angeles, não
existia? “Essa é a grande pergunta”, responde Brougher, e acrescenta: “Não foi
por falta de tentativa. A Academia decidiu já em 1929 que queria fazer um museu
do cinema. Na época, Douglas Fairbanks e Mary Pickford queriam fazer uma
biblioteca e um museu. A biblioteca foi feita, mas o museu, não. Depois, nos
anos cinquenta, voltou a ideia, mas não chegou a lugar algum. Sempre alguma
coisa se interpôs. A Academia tinha outro projeto quando se abateu a crise de
2008 e precisou deixá-lo parado. Aquele projeto acabou se transformando neste.
E aqui estamos. Finalmente está sendo construído, 90 anos depois que a ideia
surgiu.” O tubarão Bruce é uma curiosidade minúscula dentro do material que
Hollywood acumulou sobre si mesma nessas décadas. Em 2008, a Academia começou a
adquirir agressivamente recordações de Hollywood que durante anos tinham sido
deixadas em baús privados. Em 2012, por exemplo, comprou em um leilão os sapatos
de rubis que Judy Garland usava em O Mágico de Oz, graças a uma doação de
Leonardo DiCaprio. Hoje são uma das joias mais preciosas da coleção de
lembranças e terão um lugar de destaque no museu. No total, há mais de 2.500
objetos entre tecnologia antiga, vestuário e material de produção e de
divulgação.
O único exemplar
sobrevivente do tubarão Bruce, de Spielberg,
no depósito de sucata em que
passou 25 anos.
O arquivo da Academia se encontra em um edifício em plena
Hollywood chamado Centro Mary Pickford para o Estudo do Cinema. Ali, o EL PAÍS
é recebido por Jessica Niebel, a encarregada da exposição permanente do museu,
para nos mostrar com exclusividade algumas das joias da coleção. E ali nos
deparamos cara a cara com Alien. É a máscara original desenhada por H. R. Giger
para o filme dirigido por Ridley Scott em 1979. Debaixo da cabeça comprida se
pode ver uma correia com fivela com a qual se prendia à cabeça do ator “Veja a
camada de pintura translúcida”, observa Niebel. “Foi desse jeito que
conseguiram aquele brilho tão especial na tela.” De perto, a cor é espantosa,
parece que respira. Uma repugnante maravilha.
Ao lado, Niebel mostra uma peruca vermelha de Harpo Marx.
“Quando trabalhava no circo ele as usava na rosa, de palhaço, mas se deu conta
de que não ficava bem em preto e branco.” Ouvindo as explicações de Niebel,
pode-se imaginar perfeitamente as histórias que acompanharão a coleção no
museu. Mais adiante vê-se a cadeira de produção feita sob medida para Shirley
Temple. A Academia possui também a escrivaninha em que ela estudava durante as
filmagens, os calçados de sapateado e o caixote em que ensaiou a mítica dança
da escadaria em A Mascote do Regimento (1934). Tudo é presente da família de
Temple. Niebel nos mostra depois uma velha máquina de escrever. “É a máquina em
que Joseph Stefano escreveu Psicose”.
Aqui estão a máquina de descrever da qual saiu ‘Psicose’, as
perucas de Harpo Marx, as portas do Rick’s Café de ‘Casablanca’, a nave 1B de
‘2001’…
Há mais. As portas do café Rick’s de Casablanca (1942), as
tábuas do profeta Charlton Heston em Os Dez Mandamentos (1956), a nave 1B de
2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), a maquiagem original do leão de O Mágico
de Oz (1939). Definitivamente, milhares de tubarões que saíram à superfície e
pela primeira vez serão protegidos e mostrados de forma permanente. Isso mais o
que havia em porões e sótãos por toda a cidade. “Isto é Los Angeles e há muitos
objetos assim”, diz Niebel. “Podemos trabalhar com muitos dos membros da
Academia para conseguir mais peças.”
Não se trata de um mero gabinete de curiosidades. Não é um
parque temático. É um centro de estudos da história e do futuro do cinema. Está
projetado para ser o museu total sobre essa indústria. “É um museu sobre a
ciência do cinema e a arte que sai dela”, nas palavras de Kerry Brougher.
Os objetos completam uma coleção de história do cinema que é
das maiores do mundo. A biblioteca Margaret Herrick, que faz parte dos arquivos
da Academia, está colecionando documentos desde os anos 30. Abriga mais de
80.000 roteiros, muitos com anotações; 12 milhões de fotografias, uma coleção
de 61.000 cartazes de filmes e 104.000 desenhos de produção artística. Possui
mais de 1.600 documentos de produção, como cartas, notas ou contratos que
contam a história de Hollywood. Entre eles, os arquivos pessoais de Alfred
Hitchcock, Katharine Hepburn, Cary Grant e John Houston.
E, claro, a coleção inclui cinema. Este arquivo tem mais de
190.000 títulos em filme e vídeo, entre os quais estão as cópias de todos os
filmes ganhadoras do Oscar e de todos aqueles que a Academia em algum momento
considerou que tinham valor. Há muito cinema independente, guardado com o único
critério de que contribuiu com algo para a história, na opinião da Academia. O
arquivo, no térreo do Centro Mary Pickford, é formado por quatro galpões cheios
de latas nas quais os adesivos vão contando a história do cinema. Em uma
fileira qualquer a gente se depara com Se meu Apartamento Falasse, Como era Verde
o Meu Vale, Rebeca…
Para dar uma ideia do tipo de material guardado durante
décadas nesse lugar, a arquivista May Huadong se senta diante de uma antiga
mesa de edição KEM US-4 e coloca um rolo de 35 milímetros. “É uma peça muito
rara”, observa. Os fotogramas começam a passar pela lanterna e no monitor
aparece Greta Garbo. Caminha, sorri, baixa a cabeça, brinca com alguém que está
do outro lado da câmera. São provas de vestuário de Rainha Cristina (1933). “Temos
muita sorte quando encontramos algo como isto. E agora podemos compartilhá-lo.”
Tudo isso sempre esteve lá, à disposição dos pesquisadores.
Hollywood começará a mostrar o acervo pela primeira vez a todo o mundo em um
edifício que já se pode ver. As obras começaram em 2016 e a previsão é que
terminem em 2019. A forma já é perfeitamente reconhecível. Fica no centro do
mapa da cidade, na esquina da Wilshire com a Fairfax, ao lado do Museu de Arte
do Condado de Los Angeles (LACMA) e diante do novo e vistoso Museu Petersen do
Automóvel. “Esta área era chamada de Miracle Mile e é agora que começa a ser
assim de verdade”, afirma Kerry Brougher durante uma visita guiada às obras.
Uma estação de metrô está projetada para ser inaugurada em 2023 e terminar de dotar
Los Angeles pela primeira vez em sua história de um centro turístico digno, em
que de verdade haja algo para ver.
O financiamento do museu é privado em 100% mediante doações.
Steven Spielberg e Jeffrey Katzenberg puseram 10 milhões de dólares cada um
O projeto, a cargo do escritório de Renzo Piano, consiste em
remodelar um edifício art déco aerodinâmico dos anos 30, esse estilo Flash
Gordon que ainda se observa em fachadas curvas ou trens futuristas e que forjou
em boa parte a personalidade estética das cidades da Califórnia. Neste caso era
um prédio conhecido justamente porque seu canto mais visível tem um enorme cilindro
metálico. Esse cilindro será agora uma coluna dourada de latas de filme.
Ao edifício original será acrescida uma esfera que terá
dentro um cinema com mil assentos. “Como somos um museu, não basta ter um
projetor digital. Podemos projetar 16, 35 e 70 milímetros”, explica Brougher.
“Até está equipado para projetar cópias em nitrato de celulose, que deixaram de
ser produzidas por volta de 1950.” Um rolo de filme, por mais antigo que seja,
não vale nada por si mesmo como objeto físico. Tem valor em função de que se
possa ver o que há nele. Assim, uma das atrações será a projeção de filmes no
formato em que estrearam, para serem contemplados exatamente como eram vistos
na sua época. Em muitos casos, “a cópia que você estará vendo será a do ano de
estreia”. Brougher afirma que as cores e os contrastes nos filmes de nitrato
guardados no arquivo da Academia são conservados praticamente iguais. “É uma
maravilha vê-los”, aconselha.
Mark Carroll, responsável pelo projeto no escritório de
Piano explica que tinham feito teatros antes, mas não um cinema como este. “É
um cinema dentro de um museu. O cliente [a Academia] dispunha de sua própria
equipe de especialistas em imagem e som. No total, devemos ter entre 20 e 30
consultores entre especialistas de técnicas de projeção assessorando sobre a
tela, o som,,,,”
Desde que o projeto finalmente foi posto em ação, alguns dos
nomes mais poderosos da indústria se colocaram à frente. O Comitê de
Arrecadação de Fundos começou em 2012 e é conduzido por Bob Iger, CEO da Disney,
junto com a atriz Annette Bening e o ator Tom Hanks. Os principais mecenas
foram Cheryl e Haim Saban, um dos casais de filantropos mais importantes do
mundo do espetáculo, que puseram 50 milhões de dólares (163 milhões de reais).
O prédio principal levará seu nome. Também fizeram importantes contribuições
Jeffrey Katzenberg e Steven Spielberg, com 10 milhões cada um (32,5 milhões de
reais). Em outubro, a Academia anunciou que havia alcançado a cifra de 300
milhões de dólares (975 milhões de reais) em doações de vários países. O
objetivo é chegar aos 388 milhões de dólares (1,26 bilhão de reais), e falta
pouco menos de 25%.
No conselho de administração do museu figuram nomes como Ron
Meyer (vice-presidente da NBC Universal), Jim Gianopulos (CEO da Paramount),
Kathleen Kennedy (presidenta da Lucasfilm), Ted Sarandos (chefe de Conteúdos da
Netflix), Kevin Yeaman (presidente da Dolby) e Alejandro Ramírez Magaña,
presidente da Cinépolis, uma das maiores redes de cinema do mundo. “Toda a
comunidade de Hollywood levou isso muito a sério”, diz Ramírez Magaña em uma
conversa por telefone desde a Cidade do México.
O exibidor mexicano afirma que sua própria presença no
conselho indica a vontade da Academia de que o museu sirva como ferramenta para
tornar Hollywood mais global. “Querem continuar o diálogo com o cinema que se
faz em outras partes do mundo. Haverá ciclos de cinema de todas as partes; o
museu se converterá em um ponto de encontro da comunidade cinematográfica
mundial que não existia até agora em Los Angeles. Vai estabelecer uma conversa
entre Hollywood e o cinema de todo o mundo”, explica Ramírez Magaña.
Todos os que falam sobre o museu acabam dizendo estas
palavras em algum momento: “Já estava na hora”. É a primeira coisa que diz
Jonathan Kuntz, professor de História do Cinema na Universidade da Califórnia
em Los Angeles (UCLA). “Los Angeles necessitava de um museu de Hollywood já
fazia meio século. Nunca tivemos algo grande que celebrasse a grande
contribuição desta cidade à cultura mundial, que é Hollywood.”
Kuntz se compraz com os objetos mais vistosos da coleção,
mas diz que o material que mais o emociona são os milhares de documentos de
produção de um século de cinema que a Academia guarda. “Há pouco tempo, para
uma pesquisa, estive na biblioteca vendo papéis de produção de Drácula,
Frankenstein e os primeiros filmes de terror da Universal Pictures. Havia
documentos sobre as negociações do estúdio com a censura da época.” É só um
exemplo. As possibilidades da Academia para montar exposições temporais sobre
temas específicos são “infinitas”, opina Kuntz. “Espero que seja espetacular.”
Maquete do Museu do Cinema
Cópias originais de filmes ganhadores do Oscar
Zoótropo de 1860
Cadeira feita sob medida que Shirley Temple usava no período das filmagens
A máscara original de Alien.
Texto e imagens reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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