Foto: Alexandre Guzanshe
Publicado originalmente no site do jornal O TEMPO, em 04/07/2008
Heitor Capuzzo Filho - Pesquisador e professor de cinema da Escola de Belas Artes
da UFMG
De Hitchcock ao cinema soviético, da dramaturgia às
tecnologias da imagem, as pesquisas de Heitor Capuzzo cobrem um amplo
território do campo cinematográfico. Linguagem clássica, cinema comunitário e
tecnologia de distribuição foram os assuntos abordados nesta entrevista.
Por Douglas Resende
Um de seus livros mais interessantes é "Alfred
Hitchcock - O Cinema em Construção", no qual você faz uma análise da obra
do mestre do cinema clássico e suas construções de matrizes dramáticas e
narrativas. Ao contrário dos filmes de Hitchcock, e de outros diretores do
passado, como Billy Wilder e John Ford, fico com a impressão de que o atual
cinema de Hollywood, com poucas exceções, carece de perenidade, de filmes que
ficam como paradigmas, e não apenas entram e saem de cartaz seguidamente, como
meros produtos industriais. Você acha que o cinema hollywoodiano pode ter
esgotado suas possibilidades?
Quando escrevi o livro sobre Hitchcock, me marcou muito uma
frase de Ezra Pound, que dividia os artistas, e a cultura em geral, em pelo
menos três possibilidades: os inventores, os construtores e os demolidores. Os
inventores seriam aqueles que apontam caminhos novos, que fazem algo que não
havia sido feito ainda. No cinema, o Griffith é um deles. Ele deu ao cinema um
status inédito como linguagem. O que havia antes era um certo olhar inocente -
digamos que o cinema não havia atingido a maturidade. Ele demonstrou o
pontencial de uma narrativa longa.
Já havia longas, mas nenhum perto do impacto de "O
Nascimento de uma Nação". Ele articulou uma narrativa que jamais a
literatura e o teatro dariam conta. Ele diferenciou o cinema e o fez passar do
estágio de infância para uma adolescência adulta. Por isso o chamam de
"pai do cinema". Os construtores seriam aqueles que pegam o que já
existe, mas dão uma maestria, uma potencialidade que tocam o cinema pra frente.
Hitchcock pegou o que Griffith fez e deu um grau de pontencialidade tão grande
que chamou a atenção de outros realizadores como se dissesse o seguinte:
"Vocês querem usar o plano-sequência? É assim que se usa. Vocês querem
usar os recursos específicos da linguagem cinematográfica?
É assim que se faz." Os construtores seriam verdadeiros
aperfeiçoadores. Agora, justamente por serem tão fortes e tão estratificadores,
chega uma hora que a linguagem se enrijece. Tudo a que você assiste de western
lembra John Ford. De suspense, Hitchcock. Aí vêm os demolidores, que abrem
caminhos para que o cinema não fique numa camisa de força. São pessoas que
demolem os dogmas. Nessa categoria estão diretores como Glauber e Godard, que
faziam daquilo já existente uma tábula rasa. E justamente por serem
demolidores, criam um vácuo, onde vão surgir novos inventores.
É uma classificação muito rígida, mas é só para entender que
existem pessoas diferenciadas. Não dá, portanto, para falar que eu gosto mais
de Hitchcock do que de Godard, porque são coisas diferentes. E dentro do cinema
é importante que existam cineastas diferenciados. Mas existem momentos da
história do cinema onde essa pluralidade é menor e ele se torna pesado, um
mastodonte, se asfixia e transforma os criadores em operários, reprodutores de
regras.
Toda vez que sentimos o cinema sem muita vida é porque a
construção se tornou rígida demais e as pessoas estão mais preocupadas com os
cânones.
É o que acontece agora nos EUA?
Eu concordo, Hollywood está num momento de asfixia muito
grande. E uma asfixia que ela própria reconhece, haja vista a votação do Oscar,
que é feita pelo pessoal da própria classe - o prêmio de melhor fotografia, por
exemplo, são os diretores de fotografia que escolhem; o de montagem, os
montadores.
É interessante que a votação está mostrando diferenciações:
era impensável, há um tempo atrás, "Crash", ou os irmãos Cohen,
ganharem o Oscar. Neste momento, é impressionante como a Academia não está
valorizando o filme-gibi - "Homem-Aranha, "Iron-man",
"Indiana Jones". Eles estão propondo uma outra coisa. "Pequena
Miss Sunshine" é um filme que nem seria lembrado há um tempo atrás. Eles
talvez estejam pensando: "Estamos nos perdendo nessa avalanche de
glacê". A indústria tem trabalhado com o mesmo bolo, mas com outra camada
de glacê. E ultimamente alguns produtos são um bolo totalmente de glacê, sem a
massa.
Recentemente fui ao cinema e o projecionista me explicou que
aquela projeção seria realizada via satélite, por meio de um sinal enviado pela
distribuidora. Quais serão as consequências dessa mudança tecnológica no
sistema de distribuição?
Entre outros pontos está o fato de que vão colocar um número
mínimo de satélites. E o Brasil vai ter que mudar o discurso. Vai ter que
negociar com as majors. Hoje, se você faz um filme, você vai até o dono do
cinema, briga com ele e passa seu filme. Ou então vai à Videofilmes, que tem um
certo jogo de cintura, e lança o filme. Mas agora estamos falando de Murdock,
de donos de satélites.
O Brasil precisa, sim, ser autônomo, e ter o seu próprio
satélite. Porque aí garantiríamos o controle de exibição. Mas eles não abrem
mão disso. Ao contrário, trata-se de concentração de poder. Isso vai depender
de tecnologia, mas um bom projeto latino-americano seria bancar uma rede
própria, de modo que os filmes estrangeiros tivessem que passar por esses
satélites. Aí era onde o Estado deveria entrar: ter um satélite, que faria as
transmissões dos filmes estrangeiros, pelas quais seria cobrada uma taxa que
seria aplicada na produção nacional.
Agora, a ideia do satélite veio por uma questão econômica:
foram necessárias 3,5 mil cópias de "Guerra nas Estrelas" para o
lançamento só nos Estados Unidos. Gasta-se um mês fazendo tal número de cópias.
E um mês é muita coisa: significa um laboratório fechado só por conta disso,
além de que a possibilidade de pirataria é muito grande. Dos, digamos, U$ 100
milhões do orçamento do filme, cerca de U$ 20 milhões é para operações do
lançamento, e não para o filme em si. Com o satélite, você sai de 3,5 mil
cópias para uma.
De qualquer forma, as distribuidoras estrangeiras sempre
controlaram o mercado no Brasil, deixando pouco espaço para a produção
nacional. Ainda assim, o cinema brasileiro respira, às vezes arrastando milhões
de espectadores a filmes enlatados, outras apresentando uma estética mais
singular...
Isso eu acho que sempre vai existir - os iconoclastas e os
filmes de indústria. O problema desses filmes iconoclastas como possibilidade
de resistência é que eles chegam a 1% da população. Agora, existe um cinema que
nem pretende entrar nesse sistema - é o cinema da produção comunitária. Assim
como existe o funk, existe um cinema periférico, que nem vai para salas, que
não quer crítica, mas que existe e está nas associações de bairro cumprindo um
papel. Muitas vezes, ele não está nem um pouco preocupado com a linguagem.
Nós diríamos que seria um cinema mal feito. O que facilitou
isso foi o barateamento da tecnologia, de produção e de projeção.
Principalmente agora com a internet. E isso está criando uma outra leitura, um
outro cinema possível. É um fenômeno que surge no momento em que uma pessoa
resolve pegar uma câmera emprestada e faz o filme que sai, cujas temáticas
refletem questões da comunidade. Ou até mesmo com capital estrangeiro. O Vídeo
nas Aldeias, por exemplo, é um movimento maravilhoso.
É o índio se auto-representando. Ele foi muito importante
para que as tribos se conhecessem. Era o cinema que Vertov propunha: o
"cinema-olho", um olhar mecânico que expandisse o olhar humano. Isso
está sendo feito muito mais fora dessa sociedade intelectualizada, na qual
cinema é uma coisa de classe média alta: você entra na lei, pega o dinheiro e
faz o filme. Isso não é independente - é dependente do Estado. Mídia independente
é o cinema comunitário, pessoas que fazem o cinema delas por elas mesmas. Acho
muito interessante porque aí talvez estejam os demolidores: você sai de um
sistema asfixiado. Esse é o cinema realmente outsider.
Texto e imagem reproduzidos do site: otempo.com.br
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