Imagem: Hallina Beltrão
Publicado originalmente no site Revista Continente, em 01 de
janeiro de 2015
CINEMA: Revolução em dois tempos
No começo do século 20, o setor passou rapidamente de
curiosidade tecnológica à indústria, que hoje luta para manter seu poderio
Texto: José Geraldo Couto*
Conteúdo vinculado à reportagem especial | ed. 169 | jan
2015
Fascinante o desafio proposto pela Continente: cotejar as
mudanças experimentadas pelo cinema nos primeiros 15 anos do século 20 com
aquelas verificadas nos primeiros 15 anos do século atual.
À primeira vista, não haveria comparação possível, pois
entre 1900 e 1915 o cinema viu surgirem – ou consolidarem-se – as bases
tecnológicas, industriais, estéticas, culturais, sociais e políticas que fariam
dele a “arte do século” e o modo hegemônico de narrar ficções, registrar a
realidade e criar mitos de nossa era.
Antes de abordar a mais recente década e meia e suas
possíveis revoluções, cabe observar mais detidamente o que estava acontecendo
com o cinema 100 anos atrás. Na primeira década do século 20, o cinema passou
rapidamente de curiosidade científica (irmãos Lumière) e espetáculo de feira
(Méliès) a meio de expressão autônomo, com uma linguagem própria e toda uma
economia que encadeava a produção, a distribuição e a exibição.
O sucesso das primeiras apresentações em feiras, parques e
teatros de variedades propiciou o surgimento dos nickelodeons, salas populares
de exibição que cobravam um níquel pelo ingresso para sessões contínuas de
filminhos de um rolo. Essa espécie de “cinema 1,99”, que se espalhou por vários
países, em especial pelos Estados Unidos, gerou o capital inicial dos futuros
magnatas dos grandes estúdios hollywoodianos, em geral judeus pobres vindos do
Leste Europeu.
Ao mesmo tempo em que os aperfeiçoamentos tecnológicos
permitiam a realização de filmes mais longos, toda uma linguagem narrativa, com
sua gramática e sintaxe próprias, foi sendo constituída. O maior responsável
pelo desenvolvimento dessa linguagem, como se sabe, foi o pioneiro
norte-americano D. W. Griffith (1875-1948), que introduziu recursos como o
close, a montagem paralela e vários dos movimentos de câmera que se tornaram
corriqueiros.
É de Griffith também o longa-metragem fundador do cinema
americano, O nascimento de uma nação, lançado justamente no ano que fecha o
período que estamos examinando, 1915. Um ano antes, o italiano Giovanni
Pastrone havia realizado o monumental Cabiria, épico histórico ambientado em
300 a.C. que exerceria grande influência sobre o longa seguinte do próprio
Griffith, Intolerância (1916).
Ao lado do drama histórico, do documentário, da comédia de
costumes e do melodrama romântico que davam seus primeiros passos no cinema
europeu, surgiam nos Estados Unidos alguns gêneros especificamente americanos,
como o western e o filme de gângsteres.
Estava em curso uma substituição, que seria acelerada pela
Primeira Guerra Mundial (1914-18), da hegemonia da produção francesa pela
americana, o que se explica, entre outros motivos, pelo afluxo constante e
massivo de imigrantes e pela pujança econômica da jovem nação.
E dentro dos próprios EUA verificava-se um importante
deslocamento geográfico da produção cinematográfica, do nordeste do país (Nova
York) para o extremo oposto, o sudoeste (Los Angeles). Essa mudança de eixo
teve várias razões. Em primeiro lugar, o desejo dos produtores de fugir do
controle de patentes de Thomas Edison, que, baseado em Nova Jersey, cobrava
royalties pela utilização de equipamentos que ele alegava ter inventado. Além
disso, havia o clima propício da Califórnia, com sol o ano todo, e a
proximidade com os mais diversos tipos de paisagem (mar, montanha, deserto).
Somando-se a tudo isso a abundância de terrenos relativamente baratos na
região, é possível entender o surgimento de um polo de produção em Hollywood,
então um arrabalde de Los Angeles.
NASCE UMA INDÚSTRIA
Livres do tacão de Edison, os produtores enriquecidos com a
exploração dos nickelodeons começaram a estabelecer em Hollywood seus grandes
estúdios. O primeiro, a Universal, surgiu em 1912. Em seguida, vieram a
Paramount e a Fox, em 1916.
Portanto, os passos dados pelo cinema entre 1900 e 1915 são
gigantescos. Seu sentido, por outro lado, é bastante ambivalente. Pois, ao
mesmo tempo em que abre horizontes e desenvolve uma linguagem própria, o cinema
também cristaliza algumas formas duradouras de conservadorismo, com a
consolidação de estruturas narrativas codificadas em gêneros, o predomínio da
lógica industrial e a hegemonia geopolítica norte-americana.
Ao longo das décadas seguintes, surgirão, sobretudo na
Europa, mas também no próprio seio dos EUA, movimentos e correntes alternativas
a esse modelo hegemônico, mas em linhas gerais ele predomina até hoje.
Agora, vamos dar um salto de 100 anos até o início do século
atual. O que mudou, de fato, no cinema nos últimos 15 anos? Em termos de
linguagem, de invenção narrativa ou estética, praticamente não surgiu nada de
novo. Quanto à tecnologia, muitas são as novidades. Algumas delas talvez sejam
fugazes e cosméticas; outras vieram para ficar e podem transformar de modo mais
ou menos profundo o cinema tal como o conhecemos.
Fala-se muito do 3D, por exemplo, mas não se trata
propriamente de uma inovação, e, sim, do aperfeiçoamento, propiciado pela
tecnologia digital, de uma ideia testada pela primeira vez em 1915, e que desde
então passou por diversas experiências e processos.
O curioso, no caso do 3D, é que, com exceção de algumas
aventuras mais autorais (A caverna dos sonhos esquecidos, de Werner Herzog,
Pina, de Wim Wenders, ou Adieu au langage, de Godard), a técnica tem sido usada
para reforçar os aspectos espetaculares de filmes destinados ao público
infantojuvenil e justifica-se mais pelo aspecto de curiosidade de feira do que
pelo que acrescenta às possibilidades expressivas do meio. Corresponde, por um
lado, a uma certa infantilização do público de todas as idades e, por outro
(que talvez seja o mesmo), a uma espécie de embotamento ou anestesia dos
sentidos numa época de saturação audiovisual, de tal maneira, que o espectador
parece precisar de estímulos cada vez mais fortes e óbvios para ter alguma
emoção. Com exceções, os filmes de ação convertem-se em gigantescos videogames,
cheios de som e de fúria significando nada.
Mas uma revolução mais radical é a que ocorre nos meios de
captação, tratamento e difusão da imagem e do som. Câmeras digitais
relativamente baratas tornam muito mais acessível a produção de obras
audiovisuais do que na época dos equipamentos pesados da filmagem em película
de 35 milímetros. Os processos eletrônicos de edição também facilitaram e
baratearam drasticamente a finalização de filmes, tanto de ficção como
documentários.
Mais que isso: as novas tecnologias multiplicaram as formas
de recepção das obras audiovisuais. Em suas primeiras décadas, os filmes só
podiam ser vistos no cinema. Depois, passaram a ser difundidos pela televisão,
pelo home vídeo, pelo DVD. Hoje, as plataformas são inúmeras: computador,
tablet, celular – além das que foram citadas.
Em princípio, portanto, estão dadas as condições
tecnológicas que potencialmente poderiam romper o poder hegemônico dos grandes
impérios audiovisuais que começaram a ser construídos um século atrás. Na
prática, porém, não é bem isso o que ocorre. Um exemplo é o da distribuição.
Com a substituição da película pela produção audiovisual digital, que prescinde
de um suporte físico, em tese, um filme (curto ou longo, de ficção ou
documentário, nacional ou estrangeiro) poderia circular livremente, sem
precisar submeter-se ao jugo das grandes distribuidoras. No entanto, os
sistemas de codificação e decodificação de sinais a que estão submetidas as
salas exibidoras mantêm o poder de distribuição – e, consequentemente, de
ocupação das salas – nas mãos das chamadas majors.
Fora do circuito de salas exibidoras, o contexto é mais
pulverizado e, até certo ponto, livre. Filmes e séries feitos diretamente para
a internet acabam encontrando seu público, à margem das velhas estruturas.
Trabalhos audiovisuais captados com celular ou tablet já têm seus canais de
difusão e até seus festivais. Mesmo filmes “comerciais” são baixados e
difundidos (por via legal ou pirata) por computador.
UMA NOVA CINEFILIA
Em função desse conjunto de mudanças, tem havido uma
transformação visível de perfil do público de cinema (majoritariamente jovem e
de classe média urbana, dado o confinamento das salas em shopping centers e
multiplexes), com o circuito ocupado cada vez mais por um punhado de
blockbusters e a consequente exclusão das produções independentes e oriundas de
cinematografias não hegemônicas. No Brasil, onde agora temos também nossos
próprios estouros de bilheteria (todos, invariavelmente, da Globo Filmes), esse
processo é flagrante.
Como resultado dessas mudanças no cinema como comércio, há também
uma transformação da cinefilia, ou do cinema encarado como arte. Perde peso,
com exceção de certas mostras e festivais, o comparecimento ritual às salas de
exibição como locais de culto, discussão e celebração. A sala de cinema passou
a ser o templo do consumo descartável, onde a pipoca tem importância
equivalente à do filme exibido, se não maior.
A cinefilia foi banida para a internet, para os filmes
baixados e compartilhados, para os sites, blogs e revistas digitais que
cumprem, hoje, grosso modo, o papel que no passado foi dos cineclubes e das
publicações impressas. É uma cinefilia atomizada. Daí a euforia que percebemos
nos olhos, palavras e gestos dos frequentadores de eventos como a Mostra
Internacional de Cinema de São Paulo, o Festival do Rio ou a Janela
Internacional de Cinema do Recife. É o reencontro, ainda que fugaz, com o
cinema como lugar de descoberta, comunhão, sonho coletivo. Hoje, como há 100
anos.
* JOSÉ GERALDO COUTO, crítico de cinema, jornalista e
tradutor. Autor de André Breton (Brasiliense) e Brasil: anos 60 (Ática).
Texto e imagem reproduzidos do site: revistacontinente.com.br
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