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Texto publicado originalmente no site Palavras de Cinema, em 09/05/2012
Entrevista com José Rubens Demoro Almeida
Por Rafael Amaral
Em seus encontros com estudantes e interessados por cinema
em geral, o professor de direito José Rubens Demoro Almeida carrega alguns
livros fundamentais para se compreender a sétima arte. Ou apenas para ter uma
ideia de sua grandiosidade. Mas, ao lado dele, folhear os livros deixe de ser
necessário. Basta ouvi-lo. Rubens relata, nessas sessões, os significados, os
gestos ocultos, os signos e as representações que tanto inquietam à luz do
projetor.
Em uma sessão no Cineclube Consciência, em Jundiaí, Rubens
falou aos presentes após o grande musical Cabaret, de Bob Fosse, e não deixou
de apresentar seus pontos de vista sobre as relações entre os palcos e o
nazismo. Tentava mergulhar cada vez mais, revelar cada vez mais: passava por
pensadores para falar das questões do controle, do totalitarismo e do mal como
“gesto banal”. Está tudo em Cabaret, abaixo de sua música, abaixo do
inesquecível sorriso de Liza Minnelli.
Quem viu tudo isso durante o filme de Fosse? Não se sabe.
Mas, com a carga de conhecimento e referências de Rubens, as coisas ficaram um
pouco mais claras aos participantes da sessão.
Desde agosto de 2009, Rubens coordena o Grupo Imago para
estudos e pesquisas sobre Cinema e Direito com professores e alunos do Unifai
(Centro Universitário Assunção), na Vila Mariana, em São Paulo. A turma
reúne-se mensalmente para apresentar um filme escolhido e estudado previamente.
Após a sessão, em gesto cineclubista, ocorre um debate no qual os participantes
têm a oportunidade de expor ideias e pontos de vista. Ou, simplesmente, dizer
se gostou do filme ou não.
Formado pela PUC-SP, em 1977, atualmente Rubens dá aulas de
direito na Unifai. Como todo amante do cinema dedicado a compartilhar
conhecimento, também passa por outras instituições, grupos e cinemas de rua –
principalmente os de rua. Na entrevista abaixo, ele fala do trabalho com o
Grupo Imago, da presença do cinema em instituições de ensino e de suas paixões
pessoais.
O cinema deveria ser matéria de escola?
Em princípio, considero que as artes em geral deveriam ter
um espaço próprio na educação e formação do aluno. No ensino fundamental,
deveria haver um incentivo às crianças para o conhecimento e desenvolvimento
artístico, o mesmo acontecendo em níveis deferentes de abordagens, nos ciclos
posteriores. Quanto ao cinema em particular, entendo necessária uma adequação e
uma nova visão de sua concepção e história. É de conhecimento geral o quanto as
gerações recentes de alunos são ligadas às imagens nos mais diversos meios de
comunicação. As tecnologias de transmissão de imagens tem se transformado
assustadoramente e numa velocidade inusitada. Esta superexposição às imagens
compromete um pouco a relação do jovem com o cinema, num sentido mais
tradicional (uma sala escura, numa tela grande, na companhia de outras pessoas,
em geral desconhecidos) porque não há – ou não tem ocorrido – uma educação do
espectador do cinema, que o tem mais como simples diversão, sem compromisso.
Como disciplina regular a ser ministrada em escolas, o cinema poderia
acompanhar outras matérias que visem a formação integral do cidadão. O cinema
pode e deve estar presente na escola, em todos os níveis educacionais, como
importante e eficiente instrumento do ensino e da educação, formador e provocador
de reflexões e visões críticas do mundo.
Como surgiu a oportunidade de coordenar um grupo de estudos
e pesquisas focado em cinema? O que faz o grupo?
Sempre fui muito ligado ao cinema e em todas as minhas
atividades, acadêmicas ou não, gostava de estabelecer relações com filmes que
me vinham à lembrança, a partir de alguma ideia ou tema. Quando aluno de
pós-graduação da professora Maria Garcia na PUC-SP, apresentei um trabalho com
a exibição de alguns trechos de filmes e comentários sobre o contexto de
produção, realização e sua importância na história e linguagem do cinema. E o
trabalho nem era de comunicação ou de cinema em particular, mas de Direito. Posteriormente,
procurei desenvolver mais este pequeno trabalho para dar-lhe um contorno mais
acadêmico, de tal modo que pudesse ser integrado às linhas de pesquisas do
Curso de Direito. Em 2009, apresentei o projeto de grupo de estudos de cinema e
direito no Centro Universitário Assunção, a Unifai, onde hoje sou professor. A
professora Lúcia Helena Polleti Bettini, coordenadora do Curso de Direito, não
só o aprovou como o apoiou. Em agosto de 2009, iniciaram-se as reuniões do
Grupo Imago de estudos e pesquisas em cinema, direito e educação, que permanece
até hoje e reúne professores e alunos interessados principalmente em cinema.
Em seus encontros com alunos, com pessoas que possuem uma
visão de cinema ligada apenas aos blockbusters e ao produto que está nas salas
de shoppings, qual é a reação deles quando são confrontados com os filmes que
você apresenta?
Posso comparar as reações de alguns alunos, e mesmo de
alguns professores, às dos espectadores da sessão dos irmãos Lumière em 1895,
que se surpreenderam com as imagens em movimento da chegada do trem à estação:
espanto e curiosidade. O filme comentado, contextualizado, analisado, debatido
é outro filme numa outra dimensão de compreensão do cinema: deixar de apenas
“ver” filmes (sejam eles blockbusters ou não) para aprender a “ler” o cinema.
Lembra-se de alguma reação inesperada em um aluno nesse
grupo ou mesmo em algumas andanças por outros cineclubes e sessões?
Tive boas experiências relatadas. Uma em especial – e da
qual guardo como uma boa lembrança de uma reação inesperada – foi a de um
aluno, pai de família, que participou de uma reunião onde foi exibido e
debatido o filme CinemaParadiso, de Giuseppe Tornatore. É um filme a que
recorro para salientar, no início dos trabalhos dos grupos, a paixão pelo
cinema e como esta paixão transforma vidas e pessoas. Ao final da reunião, o
aluno foi a uma locadora, alugou o filme e, à noite, “convocou” toda a família,
mulher e filhos, para assistirem juntos. Pessoas que nunca – ou raramente – se
juntavam num sábado à noite, cada um cuidando de seus interesses ou cumprindo
outros compromissos, passaram duas horas assistindo a um filme que os emocionou
muito, como relatou o aluno posteriormente, para as quais fez questão de
lembrar os comentários e as observações do grupo.
Tive a oportunidade de participar algumas vezes de debates
com você, em sessões de filmes variados, com públicos variados. Nelas, me
chamou a atenção alguns pensadores que você trouxe à roda de discussão, como o
Foucault. Considera importante mesclar o cinema à filosofia e a outras áreas do
pensamento?
Considero essencial esta relação do cinema com outras áreas
do conhecimento, em especial com a filosofia. O cinema provoca, instiga
reflexões, olhares inusitados, questiona vidas e mostra uma porção particular
da dimensão da existência humana. Esta apreensão da realidade, pela
interpretação artística, demanda uma visão apurada. Afinal, durante duas horas
entregamos nossos cérebros aos realizadores do filme, e isto não é pouca coisa.
Estudo muito autores que abordam o cinema e os filmes com os olhares da
filosofia, da história, do direito, da psicologia, da sociologia, além dos
próprios teóricos do cinema (Bazin, Truffaut, Eisenstein, Ismail Xavier,
Jean-Claude Bernardet, entre outros) ou críticos (J. B. Duarte, Inácio Araújo,
Luiz Carlos Merten). Autores, como Michel Foucault, Theodor Adorno, sempre
reservaram espaço em suas obras para reflexões filosóficas sobre o cinema,
tanto como indústria de massa, tanto como produção artística. Slavoj Zizek tem ótimos
ensaios e artigos sobre o cinema, um em especial sobre Hitchcock. Juan Antonio
Rivera, professor espanhol de filosofia, usa o cinema em suas aulas e escreve
muito sobre esta experiência ímpar de reflexão filosófica. Entre nós, Júlio
Cabrera, argentino professor da Universidade de Brasília, estabelece em suas
obras relações sobre cinema e filosofia, sem esquecer Edgar Morin, sociólogo e
filósofo contemporâneo, que também dedica parte de sua produção às questões
cinematográficas. Há uma vasta produção literária e filosófica sobre cinema,
tanto no Brasil como no exterior. Explorar estas concepções e relações aumenta
muito o prazer de assistir aos filmes.
Qual a visão, em geral, que o jovem universitário tem, hoje,
do cinema? Dá para generalizar?
Não tenho tantos contatos assim com um número grande de
universitários para poder generalizar uma concepção de visão deles sobre o
cinema. A generalização seria perigosa pois seria parcial, de apenas alguns
alunos de cursos superiores. Aqueles com quem mantenho conversas e mesmo
aqueles que participam das reuniões dos grupos têm manifestado uma curiosidade
e uma vontade de conhecer mais, instigados pelos filmes e debates que se
seguem. Conheço também muitos alunos, jovens ainda, que são “cinéfilos” de
carteirinha, com muita informação e referências de cinema, de causar inveja.
Nas investidas com este público, pensando na introdução do
cinema, qual são os cineastas e filmes que você tem trazido às discussões?
Na introdução ao cinema a um público novo, gosto de fazer um
apanhado geral da história e da evolução da linguagem cinematográfica, simples
e didática: a partir dos Irmãos Lumière, de Mélliès, Eisenstein, Griffith. O
primeiro sucesso popular de filme com trilha sonora sincronizada de
OCantordeJazz, a exploração da cor em technicolor de …EoVentoLevou, ou de
OMágicodeOz, passando pelos filmes referências do expressionismo alemão (O
Gabinete do Dr. Calligari ou Nosferatu), do surrealismo (UmCãoAndaluz), o
neorrealismo italiano (Roma,CidadeAberta, LadrõesdeBicicleta), a época de ouro
do cinema norte-americano (Casablanca), a nouvelle vague francesa (Acossado,
Osincompreendidos), o cinema dos anos 1970 (Sem Destino, A Primeira Noitedeum
Homem, PerdidosnaNoite). Enfim, destaco apenas alguns filmes mais conhecidos,
mas que auxiliam a despertar a necessidade de um conhecimento mais aprofundado,
que poderá vir a seguir.
Existe alguma obra que você considera chave a essa
introdução?
Não posso escolher um filme “chave” para esta introdução.
Considero importante destacar a construção de uma linguagem própria
cinematográfica a partir de A ChegadadoTrem à Estação (Lumière), passando por
ViagemàLua (Mélliès), seguindo com Intolerância (Griffith) até
EncouraçadoPotemkin (Eisenstein).
Já foi confrontado por algum aluno, ou mesmo alguém do
público nestes encontros?
Não me recordo de ter sido “confrontado”. Não sei em que
sentido a expressão foi empregada. Se já me deparei com atitudes, ou
manifestações críticas, claro, fazem parte do debate, da discussão. O cinema
proporciona inúmeras interpretações. Em geral, considero que o entusiasmo que
manifesto nas sessões, o prazer de compartilhar ideias, reflexões, visões, a
partir de filmes, fazem com que as participações sejam amistosas, animadas,
alegres. Por conta disto, procuro me preparar bem para conduzir cada encontro:
revejo o filme a ser exibido, estudo sua ficha técnica, confronto elenco,
diretores, produtores, leio críticas e comentários sobre a obra, faço
referências ao contexto histórico de seu tema ou de sua produção, para dominar
o maior número de informações possíveis e fundamentar as discussões e os
debates, para que todos, ou pelo menos boa parte dos presentes, ao final vejam
“outro filme depois do filme”.
No campo de sua vida pessoal, como surgiu a paixão pelo
cinema? Você assistia filmes durante sua graduação, em faculdades, quando era
jovem?
Minhas lembranças de cinema são de infância e as devo muito
a meus pais. Meu pai trabalhava como gerente de cinema. Minha mãe sempre gostou
de cinema e comentava muitos sobre vários filmes. Sempre morei em bairro de São
Paulo, numa época em que os cinemas de rua ainda existiam e eram uma das poucas
diversões populares. Passava boa parte de meus dias no cinema, vendo e revendo
filmes de todos os tipos e origens: brasileiros, espanhóis, franceses,
mexicanos, italianos, japoneses e, claro, americanos. Era um pouco como o
menino Totó de CinemaParadiso. Colecionava fotogramas, assistia ao filme da
cabine de projeção e, como Truffaut (de A NoiteAmericana), colecionava cartazes
e fotos de filmes. Depois, quando já cursava direito na PUC-SP, não perdia a
oportunidade assistir aos filmes mais importantes, nos cinemas ou mesmo as
exibições especiais promovidas pelos grêmios estudantis.
O que alguém como você, um adorador de Alfred Hitchcock,
pensa do cinema americano atual?
Gosto muito do cinema americano, cresci com ele nas décadas
de 1950 e 1960. Hitchcock tem muita importância para mim, sua filmografia, sua
história, sua aguda e sarcástica apreciação da alma humana, dos dilemas e
angústias humanas, que são universais. Que o diga Kurosawa, não é? Mas não é o
único. Gosto muito de outras obras de outros diretores, de outras origens
inclusive. O cinema norte-americano sempre viveu o dilema da pressão da
indústria, do espetáculo, do mercado, em confronto com a qualidade dos filmes.
Mesmo na época de grande produção americana dos anos 1940, não se pode negar
que Hollywood produziu obras memoráveis e de notável qualidade artística,
embora os grandes estúdios priorizassem sempre os lucros da produção. Hoje
temos uma proliferação de filmes com grande apelo popular – ou, diria melhor,
adolescente – porque este é o mercado a ser atingido e que dá retorno. Nem
sempre estes “blockbusters”, que inundam a maioria das salas de cinema dos
grandes centros de consumo, ficam marcados por sua qualidade e contribuição
artística cinematográfica. É uma pena, porque acabam ocupando os cinemas e
diminuem o espaço para outras obras, americanas ou não. Há bons filmes que acabam
não sendo exibidos, e, quando são, ou ficam muito pouco tempo em cartaz, em
apenas uma sala, num horário “alternativo”, ou vão direto para as locadoras em
formato DVD, quando vão. Quantos filmes exibidos nas sessões da Mostra de São
Paulo, por exemplo, seguem em carreira comercial? Alguns poucos. Outros tantos
(ANostalgiadaLuz é um exemplo) são relegados ao acesso apenas na internet,
porque nem em DVD são lançados. Este é um efeito perverso de filmes financiados
por poderosos grupos econômicos, destinados ao consumo rápido e juvenil.
Entre aulas, debates e muito trabalho, resta tempo para ver
tantos filmes recentes no cinema? O que assistiu de bom nos últimos meses nas
grandes salas?
Resta tempo, sim, para ir ao cinema. Ir ao cinema faz um bem
imenso. É uma experiência única. Mas tenho que selecionar bem o filme e a sala,
porque o tempo é pouco. Escolho os filmes pela importância de sua produção,
pelo tema abordado, pelo diretor e atores. Escolho o cinema pela qualidade de
sua projeção e som. E, se possível, porque nem sempre é, sessões mais vazias.
Assisti e gostei de Hugo, de Martin Scorsese, por razões óbvias. E de O Artista
também. Gostei demais de A Separação, de Asghar Farhadi. Vi AÁrvoredaVida e
Melancolia. Adorei UmConto Chinês. Gostei muito de OPalhaço.
O cinéfilo tende a ser um ser solitário ou o contrário, um
ser com facilidade de se socializar devido ao convívio com outros, em uma sala
escura?
Não me considero cinéfilo, mas um amante de cinema e de tudo
o que lhe diga respeito. Sou um “cinemeiro”. Gosto de estudar, de ler, de
escrever e preparar aulas sobre filmes, sobre autores, sobre o cinema. Eu gosto
do cinema. E compartilho este prazer com muita gente (amigos, alunos,
professores). Não há solidão no cinema. Você sempre está em boa companhia:
Humphrey Bogart, Penélope Cruz, Ingrid Bergman, Grace Kelly, Woody Allen,
Charles Chaplin. Quem poderia querer mais?
Existe algum risco de a internet acabar com o ritual
coletivo de ir ao cinema?
O cinema, ao longo de sua história, foi sempre confrontado
por outras tecnologias. Quando silencioso, sofria a concorrência do rádio.
Depois, com a televisão, teve que aumentar as dimensões da tela e produzir em
cores e com som estereofônico. Depois com a técnica em 3D. A internet, não se
pode negar, é a “senhora” de nossos tempos. Mas não tem a magia do “escurinho
do cinema”. E não impedirá o que você chama de “ritual coletivo de ir ao
cinema”, se contarmos com os trabalhos de todos os amantes, cinéfilos e
educadores apaixonados pela sétima arte.
Texto reproduzido do site: palavrasdecinema.com
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